Ata Notarial (quarta parte)

Com o anterior exame da definição da ata notarial –indicando-se ser ela um instrumento público que, para dizê-lo resumidamente, não tem por objeto uma prestação de consentimento–, passamos agora considerar a divisão ou classificação das atas notariais, tema que, no entanto, convém diferir para após uma vista de dois outros: o da rogação e o dos modos de intervenção notarial nessas atas.

 

O requerimento inaugural da relação jurídica entre clientes e notário –o que se designa, comumente, rogação–, ainda que seja indispensável ao começo da atuação notarial (por isso mesmo, em latim designou-se initium essa rogação), não é um ato solene e sequer, em princípio, de compulsória expressão literal; de comum, a relação notarial instaura-se sine libelli oblatione (ou seja, sem uma solicitação escrita), embora convenha, quando não o exija a própria lei, que se faça referência, ao menos no desfecho do instrumento notarial (na parte correspondente à cláusula completi et dedi), a existência da rogação inicial: “Ego N. scriptor huius cartulae rogatus a NN. [outorgantes]... complevi et dedi” (essa citação reproduz o que era costumeiro nas escrituras beneventanas, assim o ensina José Bono Huertas, na Historia del derecho notarial español, tomo I, p. 67). Na Constituição de Maximiliano I (1459-1519), Imperador do Sacro Império Romano-Germânico –a Reichsnotarordnung, de 1512–, reguladora do notariado latino que, desde o século XIV, expandira-se para a Alemanha, preceituou-se também que se enunciasse nos instrumentos notariais a existência da rogação (cf., a propósito, Miguel Fernández Casado, Tratado de notaría, tomo I, p. 462).

 

Haverá hipóteses, é verdade, em que essa rogação se dispense (vidē José Henrique Gomá Salcedo, Derecho notarial, Barcelona: Boch, 2011, p. 332): p.ex., quando, propter officium, o notário produza uma ata para constar seu impedimento funcional, ou quando se trate de ata retificadora de erros, que se tem designado, no Brasil, em aparentemente injustificado castelhanismo, como ata de subsanação, palavra esta última que não se alista no Vocabulário  Ortográfico da Língua Portuguesa (5.ed., 2009).

 

Em ordem a movimentar o processo notarial (ou, se se preferir, a jurisdição notarial, assim a refere, p.ex., Enrique Giménez-Arnau), o initium nas atas notariais corresponde à comparência nas escrituras públicas (cf. o mesmo Giménez-Arnau, Derecho notarial, Pamplona: Eunsa, 1976, p. 726). Distinguem-se, entretanto, não só e por evidente em seus fins específicos (os próprios e discriminados das atas e das escrituras), mas também em que a rogação, para as atas notariais, não exige juízo do tabelião acerca da capacidade do rogante, nem, de comum, a dação da fé de conhecimento, ressalvadas as hipóteses (i) de a lei exigir essa dação e (ii) de a identidade do solicitante ser indispensável ao conteúdo significante da ata (ibidem, p. 727). Todavia, isso não exclui compita ao notário aferir a licitude da própria singular atuação notarial e verificar o legítimo interesse do rogante (o que, de resto, é muito difícil de fato, a cuja falta não pode o notário recusar-se à prática do ato: cf., a propósito, Pedro Avila Alvarez, in Estudios de derecho notarial (5.ed; Madrid: Montecorvo, 1982, p. 241).

 

Questão interessante nesta matéria é a de saber como se fará essa rogação para efetivar-se a ata notarial. Há quem entenda caiba ao notário dar fé da solicitação, enunciando-a desse modo no instrumento lavrado (é, p.ex., o entendimento de Novoa Seoane, abonado por Giménez, que o considera “procedimiento, sin duda, más notarial” –p. 729); todavia, há um obstáculo a vencer para admitir-se esse modo de rogação: se o ato mesmo da rogação põe em movimento o processo ou jurisdição notarial não pode, ele próprio, submeter-se a uma dação de fé pública tabelioa, porquanto haveria aí um regresso na relação notarial; em outras palavras, antes da rogação não há relacionamento notarial entre o solicitante e o tabelião, de sorte que não é possível que o próprio ato da rogatio, dando início ao processo, pudesse recepcionar a fides publica que só emerge como um posterius da rogação.

 

Parecerá prudente que a rogação se faça por escrito–em texto que, ainda somente confirme solicitação oral, convém anteceda a prática do instrumento da ata; não há, contudo, proibição de que o requerimento seja apenas oral (cf. Paulo Roberto Gaiger Ferreira e Felipe Leonardo Rodrigues, Ata notarial, S.Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 129-30; Bianca Schaedler, Ata notarial, Leme: BH Editora, 2017, p. 86-7).

 

Tenha-se em conta de que a importância jurídica do controle da vedação ordinária de o notário atuar ex officio levou, no direito espanhol vigente, a que se imponha a firma dos requerentes nas atas notariais [Reglamento de la organización y régimen del Notariado, art. 198, 8º: “Las actas notariales se firmarán por los requirentes y se signarán y rubricarán por el notario, salvo que alguno de aquéllos no pudiere o no supiere firmar, en cuyo caso se hará constar así. (…)”].  Assinale-se que a exigência diz apenas respeito à rogação; vale dizer que não afeta a narração do notário constante da ata (cf. Antonio Rodríguez Adrados. Principios notariales. Madrid: Colegio Notarial, 2013, p. 23), mas abona o entendimento de que a rogação não pode ser objeto da fé pública que só a partir dela pode emanar do notário actante.

 

Entre nós, Leonardo Brandelli, estendendo a exigência do Código civil brasileiro de 1916 (alínea f do inc. II do art. 134 –o que guarda correspondência com o agora disposto no inc. VII do § 1º do art. 215 do Código civil de 2002), sustentou caber constar “na ata notarial a assinatura do solicitante” (“Atas notariais”, in VV.AA., Ata notarial, Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris : Irib, 2014, p. 51-2).