Artigo: O NOTÁRIO E A MORALIDADE PÚBLICA (parte 19)*

Artigo: O NOTÁRIO E A MORALIDADE PÚBLICA (parte 19)*

O NOTÁRIO E A MORALIDADE PÚBLICA (parte 19)

                De dois modos compreende-se o termo vindicatio (vingança, vindicta).

              O primeiro modo, o do do próprio hábito da justiça, enquanto corresponda a uma estatuição ou imposição da lei para, principalmente, restabelecer a ordem jurídica violada por algum ilícito, e, secundariamente, prevenir-lhe a reiteração e, além de tudo, emendar o agente da ilicitude. Neste âmbito, a vindicatio é a sanção ou, mais propriamente, a pena –tanto a cominada, quanto a infligida– secundum legem. Seu primeiro e mais relevante fim é, como ficou dito, a restauração da ordem: de maneira usual, foram realizadas duas audiências, uma, em fins de 1954, e outra, em fevereiro de 1955, para que proferisse o Papa Pio XII, perante o VI Congresso Nacional da União de Juristas Católicos Italianos, uma importante alocução, Accogliete, illustri, na qual indicou ser a pena uma reação que, em face da culpa, é requerida pelo direito e pela justiça; uma e outra, disse ele, têm mútua relação (vicendevole connessione), são como o golpe e o contragolpe –sono come colpo e contraccolpo. Esta ideia, profunda e sabiamente exposta no Accogliete, illustri, realçando o principal caráter retributivo da vindicatio legal (i.e., da pena legal), perdeu muito seu prestígio no direito penal moderno e contemporâneo; foi este paulatinamente declinando em benefício dos fins (ou mesmo apenas efeitos) secundários das vindicationes; assim é que, diante de sua notória falência, uma vindicatio legal reduzida a efeitos (ou fins) não retributivos padecesse de tentações laxistas, quando não abolicionistas.

              Ao lado desse primeiro modo (que é o da pena ou vindicatio legal), outro há, que é o da vindicatio como parte somente potencial da justiça, uma sua virtude anexa, pois.

              Tal o fez ver Pedro Lumbreras, a gratidão está para o benefício, tal como a vindicatio ou vingança está para a injúria ou o dano. Trata-se, é certo, com a vingança de devolver o mal por mal, já aqui não por um imperativo da lei (o que seria a vindicatio do primeiro modo ou modo legal), mas por um dever de natureza moral.

              Impor um mal a outrem pode ser tanto um pecado, quanto um ato de virtude (exatamente a virtude da vindicatio), de maneira que deve ter-se em conta, a este respeito, a intenção de quem exercita a vingança (vindicantis animus). Se o que se tem em vista é o mero mal do culpável, isto é absolutamente ilícito –omnino illicitum–, porque alegrar-se com o mal do próximo é ódio (quia delectari in malo ulterius pertinet ad odiumS.th., II-II, 108, 1). Todavia, se a intenção do executor da vingança é o bem do culpável, seja por sua emenda (metanoien), seja, ao menos, por sua coibição (epistefrein), ou ainda, entre outros fins, para a tranquilidade social e a defesa da justiça e da honra de outrem, “pode ser lícita a vingança, tomando em consideração outras circunstâncias devidas” (S.Tomás).

              Disse Garrigou-Lagrange que as muito numerosas virtudes que devemos praticar –contam-se elas às dezenas, se alistamos as anexas da principais– consistem (ressalvada a justiça) num termo médio entre vícios opostos: assim, p.ex., a virtude da fortaleza está posta entre o excesso que há na temeridade e a falta que existe na covardia. Ora bem, a vindicatio, passível embora de padecer dos extremos da exageração e do déficit, suporta, em nossos tempos, o vício de sua deficiência, com uma relaxação habitual dos castigos, aí incluída a breviatio manus, em que se adverte a culpa e se avisa da pena, mas esta se omite com o que, sob o nome de tolerância, antes esconde o acumpliciamento com o mal e a pusilanimidade.

              Este segundo modo da vindicatio é uma inclinação natural do homem para fazer cessar as injúrias e os danos que lhes são inferidos, sempre que não seja possível o recurso à vindicatio legal (pense-se, p.ex., na legítima defesa ante uma agressão inopinada): a história registra a presença da vingança já nos povos da Antiguidade (cf. os estudos de Lemaire, sobre a vindicatio no povo hebreu, de Svenbro, acerca da Grécia antiga, de Yan Thomas, quanto à velha Roma), quer se trate de povos ocidentais (Gérard Courtois) ou extraocidentais; a Bíblia dá-nos farto exemplo da vindicatio: pense-se na submersão dos egípcios no Mar Vermelho, no castigo imposto aos idólatras do bezerro de ouro, nas penas infligidas aos habitantes de Sodoma. Assim, é a moderação da vindicatio –e não sua exclusão, sic et simpliciter– o que a torna virtude, sendo este o modo de sua racionalização, de que segue compreender que o laxismo (incluso o legal) fomenta o desejo de vingança, porque anima a culpa e favorece o mal: parodiando a acertada sentença de Lacordaire, segundo quem “entre le faible et le fort c'est la liberté qui opprime et c'est la loi qui libère”, pode mesmo dizer-se que entre o fraco e o forte é a relaxação que oprime, e o castigo (a vindicatio) o que liberta.

              Os notários são também chamados a bem exercitar, com o temperamento justificável, a imposição dos castigos, seja na vida familiar (quanto não nos dói cumprir a função paideica no âmbito da família!), seja na vida profissional, não desleixando das punições sempre que elas se revelem um bem para o culpável, para a tranquilidade social e a honra da instituição.

              Lembremo-nos, entretanto, de que a automaticidade das penalidades, a exemplo também de sua esquematização ou tabelamento, atenta contra sua necessária personalização. Muitas vezes ocorre que a vindicatio –em seu segundo modo– deva dispensar-se, não por tolerância ou sonolência piedosa, mas para atender à conveniência e à oportunidade das punições.

*Por desembargador Ricardo Dip

Fonte: CNB/PR