Do uso

(da série Registros sobre registros n. 214)

                                                           Des. Ricardo Dip

 

 

849. O item 7º do inciso I do art. 167 da Lei brasileira 6.015, de 1973, contempla, ao lado da hipótese do registro stricto sensu do usufruto, as do mesmo registro quanto ao uso e à habitação.

 

É frequente atribuir-se ao direito real do uso a indicação de tratar-se de um usufruto restrito (Washington de Barros Monteiro, Carlos Roberto Gonçalves), um usufruto em miniatura (Orlando Gomes): “A diferença essencial entre o uso e o usufruto –disse Clóvis Beviláqua, comentando a norma do art. 742 do Código civil brasileiro de 1916– está em que o primeiro [o uso] é mais restrito”.

 

Referia-o o Digesto: uti potest frui non potest –ou, numa tradução estilística: o usuário pode usar da coisa, mas não desfrutá-la. Lafayette disse que o direito de uso é o mesmo direito que tem o usufrutuário, excluído o de perceber os frutos, quer natural, quer civis.

 

A expressão verbal do que seja o direito de uso parece bastante simples, mas a prática é outra história: Orlando Gomes, para ficarmos num só exemplo, acabou por patentear a dificuldade, reiterando o tropeço (deve supor-se que de modo consciente… noblesse oblige) do antigo art. 740 do Código civil de 1916; Orlando Gomes conceitua o uso como “a faculdade de, temporariamente, fruir a utilidade da coisa que grava” (a ênfase não está no original), expressão que também se encontrava, com só mudança do tempo verbal (em vez do infinitivo fruir, usou-se o verbo no futuro: fruirá), no texto do referido art. 740.

 

A esse usufruto em tamanho pequeno já se imputou ser, entre nós, uma persistência irrelevante (Carvalho de Mendonça), cuja permanência separada do usufruto só tem algum sentido “por amor à tradição histórica” (Caio Mário), mas é preciso considerar isso, cum grano salis, porque o uso, no direito romano, alçou-se, com Justiniano, ao status de direito real para atender, aparentemente, a necessidades práticas reportadas a um legado de uso despido desse caráter real (vidē D’Ors, Derecho privado romano, § 182 e 198). Ou seja, parecerá que a indistinção entre usufruto e uso possa mesmo admitir-se, mas isso desde que se garanta, com o atributo de valer contra omnium, um usufruto restrito, um usufruto em miniatura. Assim, o problema é antes conceitual e teórico do que de natureza prática, não sendo custoso observar que não falta quem (p.ex., Pietro Bonfante) atribua a Justiniano a intenção de unificar numa só categoria todos os iura in re aliena.

 

850. O usus, entre os romanos, alinhava-se no gênero das quatro servidões pessoais limitadas, junto do usufructus, da habitatio e das operæ servorum et animalium (cf. Martín Wolff) –os serviços dos escravos e dos animais. Consistia o usus em ser um uso sem fruição, sem desfrute da coisa, conceito que, por muito restritivo –e quase inútil na prática– justificou o esforço dos juristas clássicos em ampliar a noção o mais possível (Jörs-Kunkel), chegando a admitir-se (p.ex., Sabino e Paulo) que o usuário pudesse recolher alguns frutos para atender às necessidades pessoais e familiares. Num primeiro momento, diz Santos Justo, com uma limitação: os frutos deviam consumir-se no próprio local da colheita.

 

A realidade das coisas cobrava, então, sua veracidade, que o direito não consegue ladear com êxito:  “…se a coisa é de natureza que o uso dela traz pouco ou nenhum proveito, o Direito afrouxa de sua severidade, e consente ao usuário a faculdade de perceber uma certa porção de frutos, tantos quantos bastem para as suas necessidades e das pessoas de sua família” (Conselheiro Lafayette). Não diversamente:  “…o preceito restritivo foi alterado na prática, pois, em muitos casos, tornava o direito inútil, pelo que se veio a admitir que, em determinadas situações, o usuário podia perceber frutos da coisa, se só assim tivesse utilidade prática” (Orlando Gomes, com apoio de Maynz).

 

Todavia, admitindo-se, entre os romanos, pudesse o usuário colher frutos naturais da coisa, destinando-lhes o consumo à manutenção razoável da família, inibiu-se, todavia, pudesse vendê-los (D’Ors), o que põe em saliência um traço distintivo com o usufruto.

 

851. O Código civil brasileiro de 2002 consagrou essa ideia do uso com uma dada possível fruição: “O usuário usará da coisa e perceberá os seus frutos, quanto o exigirem as necessidades suas e de sua família” (caput do art. 1.412). Explicitou-se o que parecia insinuado na expressão “fruirá a utilidade da coisa” que constava do art. 742 do Código civil de 1916.

 

Não é diverso o que se lê no art. 1.485º-1 do Código civil português: “O direito de uso consiste na faculdade de se servir de certa coisa alheia e haver os respectivos frutos, na medida das necessidades, quer do titular, quer da sua família”.

 

Parece interessante sublinhar que o Código civil argentino de Vélez Sarsfield, em seu art. 2.948, já previa, com senso de realidade, ser possível ao titular do direito de uso “tomar sobre los frutos de un fundo ajeno, lo que sea preciso para las necesidades del usuario y de su familia”.

 

Esse direito de uso, portanto e segundo o vigente ordenamento jurídico brasileiro, é o direito real de um possuidor direto (Clóvis Beviláqua), pessoa física (cf. Rui Pinto Duarte),  de aproveitar-se (ter o gozo de) de coisa alheia, seu objeto material, de maneira limitada –ou seja, sempre salva rei substantia e indivisível–, temporária, porque é um desdobramento do domínio, limitando-se o aproveitamento da coisa às necessidades pessoais do usuário e de sua família, uma vez que se trata de direito constituído intuitu personæ, de que segue sua incessibilidade (na lição de Carlos Roberto Gonçalves).

 

852. Avulta, para caracterizar o direito real de uso –e, com isso, diferenciá-lo do usufruto–, considerar o tema de sua limitação: as necessidades pessoais do titular e de sua família.

 

Entre nós, o Conselheiro Lafayette, abonando-se, sobretudo, das lições de Justus Thibaut, fazia corresponder ao direito de uso a plenitude do aproveitamento da coisa, sem atender, no que diz com o estrito usus rei, aos limites das necessidades do usuário ou de sua família; a isso referiu o “direito de uso em toda a sua pureza”. Daí sua critica ao Código civil francês (art. 630: “Celui qui a l'usage des fruits d'un fonds ne peut en exiger qu'autant qu'il lui en faut pour ses besoins et ceux de sa famille. Il peut en exiger pour les besoins même des enfants qui lui sont survenus depuis la concession de l'usage” –o destaque não é do original) e a outros códigos que lhe serviram de inspiração. Note-se, todavia, que Lafayette apenas se reporta à ausência de limites para o aproveitamento (ou gozo) da coisa, não para sua fruição, esta sim, limitada às necessidades pessoais do titular do direito de uso e às de sua família. Ou seja, aproveitamento pleno da coisa, mas sem, com isso, negar a limitação quanto ao percebimento de frutos (é dizer, quanto à fruição).

 

Há no Código civil brasileiro normas concernentes à determinação dessas necessidades pessoais do usuário e de sua família, normas quer referente à singularização objetiva (ou quantitativa), quer relativa a seus sujeitos. A primeira é a que corresponde ao § 1º do art. 1.412 desse Código: “Avaliar-se-ão as necessidades pessoais do usuário conforme a sua condição social e o lugar onde viver”. A segunda, a do § 2º do mesmo artigo: “As necessidades da família do usuário compreendem as de seu cônjuge, dos filhos solteiros e das pessoas de seu serviço doméstico”.

 

Disto haveremos adiante de tratar, com a brevidade que se impõe, e, seguidamente, cuidaremos do tema do desdobramento dominial no uso, de seu objeto material, do chamado quase uso, de sua indivisibilidade, incessibilidade e tempoariedade,  dos modos de constituição e de extinção desse direito, et reliqua.