Sobre a enfiteuse

Sobre a enfiteuse

(da série Registros sobre registros n. 222)

                                                                                          Des. Ricardo Dip

  1. 871. O item 10 do inciso I do art. 167 da Lei brasileira 6.015, de 1973, prevê o registro stricto sensu da enfiteuse.

              Também conhecida pelos nomes de aforamento e de emprazamento, a definição de enfiteuse disse Umberto Eco ser mais fácil enunciar do que a do verbo fazer (in Da árvore ao labirinto). Mas isso não contorna a história real de uma dificuldade: a de admitir-se a duplicação do direito de propriedade, o que, refutado pelo direito romano antigo, só se viu reconhecido na Idade média.

              Consiste, enfim, a enfiteuse em um desdobramento da propriedade, pelo qual desdobre o titular dominial atribui a outrem (que se denomina enfiteuta ou foreiro) a ampla fruição do imóvel; essa fruição é o que se chama de domínio útil e inclui a possibilidade de transferência do direito, por ato entre vivos, e de transmiti-lo, mortis causa. Conserva, porém, o titular de domínio (senhorio direto) um direito –que se designa domínio eminente ou domínio direto–, direito esse sobre a substância do imóvel, não embora sobre sua utilização que, como ficou dito, é amplamente entregue ao enfiteuta. Em contrapartida, tem-se a obrigação de o enfiteuta pagar ao senhorio direto uma prestação anual, que se nomeia foro, cânon ou pensão.

  1. 872. O vigente Código civil brasileiro proibiu a constituição de enfiteuses e subenfiteuses (estas últimas são “enfiteuses de enfiteuses”, é dizer, o desdobramento do domínio útil do imóvel, tal que o foreiro originário se trate ao modo de um senhorio direto). Todavia, considerando o fato da sobrevivência de enfiteuses constituídas ao tempo das normativas anteriores, esse Código civil prescreveu que, até a extinção das enfiteuses antecedentes, devam elas reger-se pelas disposições do Código civil de 1916 e as leis que o alteraram (cf. caput do art. 2.038). Vedou-se, no mais, a cobrança de “laudêmio ou prestação análoga nas transmissões de bem aforado, sobre o valor das construções ou plantações” (inc. I do § 1º do mesmo art. 2.038), preservando-se, todavia, a regulação especial da enfiteuse de terrenos de marinha (§ 2º).

              Observe-se, pois, que não se aboliu de todo a possibilidade jurídica de constituir-se enfiteuse no direito brasileiro. Proibiu-se integralmente a enfiteuse de direito privado, mas não de todo a de direito público, viável possa ainda ela estabelecer-se sobre terrenos de marinha, nos termos do que dispõe nosso Decreto-lei 9.740, de 5 de setembro de 1946 (assim, no art. 64: “Os bens imóveis da União não utilizados em serviço público poderão, qualquer que seja a sua natureza, ser alugados, aforados ou cedidos”). Acrescente-se que a matéria relativa ao aforamento de terrenos de marinha se previu no § 3º do art. 49 do Ato das disposições constitucionais transitórias da Constituição federal brasileira de 1988: “A enfiteuse continuará sendo aplicada aos terrenos de marinha e seus acrescidos, situados na faixa de segurança, a partir da orla marítima”.

  1. 873. Abdicando-se aqui de referir mais a miúdo a controvérsia histórica acerca de ser mais remota a origem grega ou a romana da enfiteuse (cf., por brevidade de estudo, as referências de Serpa Lopes, no volume III de seu Tratado dos registos públicos, itens 495 e 496), consideremos apenas, em razão de sua importância na formação do direito brasileiro, alguns traços do instituto no direito da Roma antiga. Não custa dizer, entretanto, assim o ensinou Álvaro D’Ors, que a própria palavra enfiteuse deriva do grego (plantação), não estando em sua gênese, pois, o sentido de arrendamento de largo prazo que veio a adquirir nas fontes romanas.

              A vocação expansiva do Império romano levou a que as terras submetidas a seu domínio militar e político fossem, de variado modo, assinadas à ocupação pelos próprios vencidos,  sob a forma de arrendamento, com o principal objetivo de, mediante a contrapartida de uma renda (vectigal), cultivarem-se elas, e esse arrendamento –conductio agri vectigalis– constituía-se frequentemente de maneira perpétua ou por tempo indefinido, com a nota de sua continuidade pelos herdeiros do possuidor (vidē, por todos, Álvaro D’Ors, Jörs-Kunkel, Pietro Bonfante). De início, a conductio perpetua  tinha por objeto apenas imóveis submetidos ao domínio público romano, sobrevindo, porém, sua extensão, sob a forma de direito real (ius perpetuum), para abranger prédios de propriedade privada, vindo a configurar-se, então, o ius emphyteuticum. Bonfante entendeu provável que a enfiteuse romana tenha surgido com o caráter de limitação temporal do arrendamento hereditário anterior, dando-se o caso de que, a partir de fins do século III d.C. (ou começo do séc. IV), a instituição confundiu-se com o mesmo arrendamento a perpetuum, até que, sem controvérsia, sob o regime de Justiniano, uma só forma houve para os dois, designando-se enfiteuse.

              Essa espécie de locação perpétua teve, portanto, relevante papel político, social e econômico no Império romano, e, na Idade média, conviveu com outras figuras de posse de imóveis alheios, com que foi possível socorrer as estendidas necessidades humanas. Assim, ao lado da terra propria (proprium, o imóvel alodial, possuído de modo pleno pelo dominus), houve diversas formas de posse de imóveis por terceiros não proprietários, quais os diferentes tipos de tenures do direito franco –ou tenências, em que o apossamento de uma terra é concedido por seu dono para o uso e fruição prolongado, mas precário, de um terceiro (tenente, precarista, tenancier);  entre os tipos de tenência, podem contar-se o colonato (em que o possuidor se ligava pessoalmente à terra que tinha a obrigação de cultivar), o feudo (que, por exemplo, em Portugal, foi uma tenência beneficiária, dispensada do pagamento de foro), a precaria (com cânon de menor expressão), a superfície (uma sorte de variedade da enfiteuse, porque não compreendia a totalidade do fundo imobiliário, senão que apenas seu âmbito superficial), o censo vitalício (cuja duração equivalia ao da vida do possuidor do imóvel), o foro temporário e, não menos, a enfiteuse ou foro perpétuo –cf., brevitatis causa, John Gilissen, Introdução histórica ao direito (edição portuguesa de Fundação Calouste Gulbenkian).

              Há quem classifique a enfiteuse entre os tipos de censo (p.ex., Morell y Terry), distinguindo-a do censo reservativo –porque neste há cessão da propriedade plena– e do censo consignativo (que muito se acerca de uma hipoteca), porquanto, no censo enfitêutico, dá-se a cessão apenas do domínio útil, preservando o senhorio direito a possibilidade de consolidação dominial se faltar o pagamento do foro.

              Há em todos esses tipos de tenência a nota de limitação mútua do poder de disposição (próprio do domínio direto) e do poder de aproveitamento (que se vê com o domínio útil), mas deva ainda destacar-se a característica de esses tipos refletirem uma divisão do direito de propriedade, um desdobramento que permitiu afirmar, durante o Medievo, uma duplicidade jurídica, que, como já ficou sobredito, foi recusada pelo direito romano antigo; lê-se em Serpa Lopes: “A consequência da concepção do dualismo medieval foi reconhecer-se no foreiro a qualidade de proprietário –dominius utilis (…)”.

              Talvez, contudo, tenha sido a perpetuidade dessa duplicação –utilíssima, à sua altura, para remediar as necessidades econômicas– o que levou a um paulatino enfraquecimento do instituto, desembocando, no caso brasileiro, em sua estritíssima reserva apenas para os terrenos de marinha.

              Prosseguiremos.