Sobre o pacto antenupcial (primeira parte)

(da série Registros sobre registros n. 228)

                                                           Des. Ricardo Dip

 

887. A vigente Lei brasileira 6.015, de 1973, prevê, no item 12 do inciso I de seu. 167, o registro stricto sensu “das convenções antenupciais”, tal se diz, em flexão plural, no texto da mesma lei, que reitera essa referência pluralizada no item 1º do inciso II de seu art. 167, no inciso V do art. 178 e no art. 244, em que fala de “escrituras antenupciais” (na lista de títulos inscritíveis do art. 167, alguns deles indicam-se com o uso do singular correspondente: penhor, usufruto, uso, habitação, enfiteuse, anticrese, etc.; outros, sem que se aviste a razão desta variedade, no plural: contratos de penhor, contratos de promessa de compra e venda, cédulas de crédito, penhoras, arestos, sequestros, etc.; quanto aos pactos, o uso do plural, adivinha-se, provém dos quadros relativamente estreitos de seu conteúdo típico, estreiteza que não atinge, sem mais, seus conteúdos atípicos, que parecem até avultar na hora presente).

 

Esse registro da convenção antenupcial (também dita, entre outras designações, pacto antenupcial, pacto dotal, escritura antenupcial, convenção matrimonial) deve realizar-se no Livro 3 (registro auxiliar) do ofício imobiliário (inc. V do art. 178 da Lei 6.015/1973), cuja competência territorial é referida na lei ao “domicílio conjugal” (art. 244), prescrevendo-se, além disso, sua averbação nos registros (i.e., nas matrículas e à margem das transcrições) relativos a imóveis ou direitos reais de qualquer dos cônjuges (item 1º do inciso II do at. 167 e art. 244 da Lei 6.015).

 

888. Nada obstante o caráter institucional que, por sua importância fundamental na constituição da comunidade política, possui o matrimônio, há nele espaços de autonomia das vontades dos partícipes, avultando-se o das relações econômicas dos cônjuges, porque, tal o disse o Conselheiro Rodrigues Lafayette, “a comunhão de vida (individua vitæ consuetudo) que o casamento estabelece entre a mulher e o marido não pode deixar de exercer influência direta sobre os bens que os cônjuges trazem para o casal e sobre os que de futuro adquirirem” (Direitos de família. 4.ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1945, § 50). Ainda ao tempo do Código civil brasileiro de 1916, Clóvis Beviláqua, versando seu art. 256, comentara que a livre escolha do regime patrimonial no casamento é “o sistema que melhor consulta o interesse dos cônjuges, e o que melhor se ajusta às nossas tendências morais, além de ser o da nossa tradição jurídica”. Dessa maneira, assim o prevê a atual normativa brasileira de regência da matéria, pode eleger-se o regime matrimonial de bens, resguardadas as limitações que a lei estabeleça.

 

Pode conceituar-se pacto antenupcial o ajuste antecedente da celebração do matrimônio, por meio do qual ajuste os pactantes estipulam, essencialmente, as condições da futura comunidade matrimonial quanto ao patrimônio presente e futuro.

 

Além, contudo, de pactuações essenciais a que se dirija uma convenção antenupcial –que são as propriamente destinadas à regência econômica do matrimônio–, podem agregar-se estipulações não essenciais à direção do regime patrimonial do matrimônio. Disso advém que pode haver diversos capítulos num mesmo título formal: capitulação –palavra derivada do latim capitulum, capituli– significa “fazer convenção” (cf., brevitatis causa, De Plácido e Silva, in Vocabulário jurídico), e pode assim falar-se, com a doutrina estrangeira, em capitulações ou capítulos matrimoniais, para abranger não só a regulação econômica de um matrimônio futuro, mas também o de um matrimônio já existente (o que contempla eventuais modificações do regime originariamente adotado); ademais, porém, desse caráter regencial de bens, também se fala em capítulos matrimoniais atípicos, abarcando objetos distintos do regime de bens no matrimônio (p.ex., o reconhecimento de filiação não matrimonial e doações em razão do matrimônio –vidē María Dolores Díaz-Ambrona Bardaji e Francisco Hernández Gil, Lecciones de derecho de familia, 2.ed., Madrid: Ramón Areces, 2007, p. 263-4).

 

Assim, o pacto antenupcial é um contrato que, principalmente, concerne ao regime econômico matrimonial. Isso, todavia, não exclui a possibilidade de, em acréscimo a seu objeto essencial –destinado ao regime econômico de bens–, o pacto recolher outros ajustes, com ou sem relação com o matrimônio. Cabem, pois, nesse contrato, quer estipulações substancialmente relativas ao regime econômico aplicável ao matrimônio, quer estipulações celebradas apenas em função do matrimônio, em razão de sua expectada realização, e não para reger-lhe as relações econômicas interconjugais (nesse sentido, cf. Antonio Cabanillas Sánchez, “Las capitulaciones matrimoniales”, in VV.AA., Derecho de família, coord. de Gema Díaz-Picazo Giménez, Cizur Menor: Civitas : Thompson Reuters, 2012, p. 592-593).

 

Pode admitir-se, portanto, um gênero de capítulo matrimonial em que se distingam as estipulações próprias ao regime econômico do matrimônio –ou seja, versando aquilo que é da essência do pacto antenupcial–, e as convenções que não digam respeito a esse regime. Assim o observou José Luis Lacruz Berdejo, tudo o que conste do pacto que não pudera estabelecer-se fora dele, é propriamente estipulação matrimonial; o que, sendo embora formalmente uma parcela do capítulo matrimonial, possa celebrar-se de maneira autônoma, é algo que se acrescenta em função do matrimônio, sem com isso determinar algo para seu regime. Leia-se, a propósito,  em Lacruz:

 

“En el instrumentum nupcial caben pactos de muy diversa índole; por de pronto, y aun sin relación con el matrimonio, cualesquiera negocios de los que pueden constar en escritura pública; además, negocios familiares y sucesorios cuyo contenido tampoco es «matrimonial»; dentro ya de éste, las dotes y donaciones propter nuptias, y, sobre todo, las determinaciones sobre el futuro régimen de la sociedad conyugal” (Derecho de familia -El matrimonio y su economía. Cizur Menor: Civitas : Thompson Reuters, 2011, p. 272).

 

Com esse sentido amplificado, ao pacto antenupcial não repugna a intervenção de terceiros pactantes. Mas essa matéria é disputável desde o advento do Código civil brasileiro de 2002. Com efeito, nosso Código civil de 1916 prevendo a possibilidade de doação feita “em contemplação do casamento futuro com certa e determinada pessoa” (art. 1.173), não só admitiu expressamente pudera ser aí doador um terceiro, senão que dispôs no art. 313 que a doação pudesse ajustar-se no contrato antenupcial. O Código de 2002, embora também preveja, em seu art. 546, possam terceiros doar em razão de casamento futuro, com a mesma condição suspensiva de que as núpcias se celebrem, não reproduziu, contudo, a norma do art. 313 do Código anterior. Parece interessante referir que, em sentido próprio, só os futuros cônjuges podem participar de um pacto antenupcial: não haveria mesmo razão de ser que terceiros estabelecessem a disciplina do regime de bens alheios; isso, porém, não exclui a possível participação de terceiros quanto às capitulações atípicas, o que já era, p.ex., doutrina de Lafayette e, abonando-o, de Carvalho Santos:

 

–        “Os pactos antenupciais celebram-se entre os dois esposos, mas muitas vezes toma parte neles e assina também o instrumento a pessoa, ascendente, colateral ou estranho que faz doações subordinadas ao casamento” (Conselheiro Lafayette, o.c., § 51).

 

–        “Poderão figurar também nos pactos antenupciais, bem como assinar o instrumento, os ascendentes ou outros parentes dos noivos, ou mesmo estranhos, que, na mesma ocasião e ato, fizerem doação a qualquer dos noivos…” (Código civil brasileiro interpretado, vol. V, comentário ao art. 256; no mesmo sentido, Serpa Lopes, Tratado dos registos públicos, item 264).

 

Não parece que o só fato de não se reiterar, no Código civil de 2002, a norma do antigo art. 313 do Código de 1916, baste para recusar-se que a doação por terceiros, em função de casamento futuro, possa realizar-se na ocasião mesma do pacto antenupcial. Aparenta favorecer essa intervenção de terceiros a cindibilidade dos títulos, ou seja, a possibilidade de dividi-los em capítulos jurídicos suscetíveis de apreciação discriminada e de, quando o caso, inscrição registral distinta.

 

Prosseguiremos.