Sobre o pacto antenupcial (sequitur)

(da série Registros sobre registros n. 229)

                                                           Des. Ricardo Dip

 

889. O pacto antenupcial é um negócio jurídico –e mesmo pode ser um conjunto de vários negócios jurídicos (Rosa Maria de Andrade Nery refere-se, a propósito, ao gênero negócios antenupciais no vol. V das Instituições de direito civil, p. 189 et sqq.)–, negócio celebrado, necessariamente, antes do matrimônio dos contratantes, matrimônio que, no entanto, além de influir nesse pacto como sua condição suspensiva, integra-lhe o objeto, porque as estipulações pré-nupciais visam exatamente à regência da vida matrimonial.

 

É, pois, à conta desse caráter relevante do matrimônio em relação ao pacto –não só como sua condição suspensiva, mas como seu objeto– que, sem embargo da autonomia de ambos –matrimônio e pacto–, pode justificar-se o uso da expressão pacto matrimonial; tem este caráter acessório, relativamente ao casamento (assim, Lacruz Berdejo, Derecho de familia, p. 277), e, de conseguinte, deve admitir-se a observação de Milton Paulo de Carvalho Filho no sentido de que haja uma assimetria no relacionamento entre o pacto e matrimônio, porquanto, inválido este, invalida-se o pacto, mas, nulo ou anulável a convenção antenupcial, isso não aflige a validade do casamento –in Código civil comentado, VV.AA., coordenação de Cezar Peluso, p. 1.764).

 

Tratando-se de negócio jurídico –é dizer, de um acordo de vontades–, esse pacto está sujeito às normas gerais relativas aos contratos, ressalvadas eventuais disposições específicas (cf. Lacruz e Cabanillas Sánchez). Assim, prevendo a normativa posta quais sejam os regimes econômicos matrimoniais –no quadro brasileiro atual: os regimes de bens (i) de comunhão parcial, (ii) de comunhão universal; (iii) de separação convencional; (iv) de separação legal; e (v) de participação final nos aquestos (com que se substituiu o regime dotal existente em nosso Código civil de 1916)–, seguem aplicáveis estas palavras de Lafayette, para quem “podem os contraentes escolher um destes regimes, ou modificá-los e combiná-los entre si de modo a formar uma nova espécie, como se pode exemplo convencionam a separação de certos e determinados e a comunhão de todos os demais” (Direito de família, §50).

 

Neste amplo espectro de autonomia das vontades contratantes, podem os interessados estabelecer, pois, qualquer dos regimes econômico-matrimoniais admitidos em lei –incluído o que tenha caráter supletivo (i.e., atualmente, no Brasil, o da comunhão parcial de bens), e, assim o disse Carvalho Santos, “pouco importam os termos pelos quais manifestem os nubentes a sua intenção a esse respeito, desde que não dê lugar a dúvidas”; tampouco se impede que os pactantes combinem “os diversos regimes previstos pela lei” (Código civil brasileiro interpretado, tomo V, comentário ao art. 256), desde que, nessa combinação, não se adotem disposições incompatíveis entre si, contrárias às expressas limitações legais (cf. art. 1.641 de nosso Código civil de 2002), fraudatórias de terceiros ou, ainda, opostas a “disposição absoluta de lei” (art. 1.655 do mesmo Código), admitindo-se o controle do conteúdo do pacto pelo poder judiciário, “da mesma forma como controla o conteúdo dos contratos em geral, ou seja, à luz dos bons costumes e da boa-fé” (Rosa Maria de Andrade Nery, vol. V, p. 191, reportando-se aos arts. 421 e 422 do Código civil). Quanto ao tema da harmonia do pacto com os bons costumes, recolhe-se da doutrina de Cabanillas Sánchez: “Las buenas costumbres es otra limitación a la libertad de lo cónyuges, existiendo una indudable equivalencia entre buenas costumbres y moral o ética social” (in Derecho de familia, VV.AA., coordenação de Gema Díez-Picazo Giménez, p. 599).

 

890. Abdicando aqui de versar os supostos gerais dos contratos –designadamente, o que diz com a capacidade das partes, que é “a mesma exigida para a celebração do casamento” (Milton Paulo de Carvalho Filho)–, interessa a nosso capítulo registral considerar o tempo e a forma da pactuação antenupcial, bem como sua inscrição obrigatória no ofício imobiliário.

 

Os dois primeiros elementos –forma e tempo– estão previstos especificamente no art. 1.653 do Código civil brasileiro de 2002 (“É nulo o pacto antenupcial se não for feito por escritura pública, e ineficaz se não lhe seguir o casamento”), e já se anunciavam no Código de 1916 (art. 256). O tema do registro indica-se no art. 1.657 do Código de 2002 (“As convenções antenupciais não terão efeito perante terceiros senão depois de registradas, em livro especial, pelo oficial do Registro de Imóveis do domicílio dos cônjuges”) e previa-se antes no art. 261 do Código civil anterior.

 

Tal se avista de sua própria designação –pacto antenupcial–, deve esse pacto anteceder temporalmente o matrimônio, sob pena, diz agora o art. 1.653 do Código civil de 2002, de ineficácia (ou seja, sem o casamento, “a convenção é válida, carecendo de efeito jurídico” –Paulo Nader, Curso de direito civil, vol. 5, item 143.1)   Nosso Código de 1916 indicava a sanção nulidade do pacto se não houvesse o casamento posterior (inc. II do par. único do art. 256), já antes referido ser lícita a convenção, desde que realizada “antes de celebrado o casamento” (caput do art. 256). Essa anterioridade cronológica, entretanto, não inibe que o pacto se consinta no mesmo dia do casamento, desde que o preceda. Pôr-se-á, nessa hipótese de datarem-se num mesmo dia o pacto e o matrimônio, a questão da prova da anterioridade, sendo, pois, muito conveniente que o título contratual “mencione la hora en que se ha celebrado” (Lacruz, o.c., p. 287, remetendo-se às posições contrastadas de De Page e Bianchi, o primeiro exigindo prova da anterioridade, o segundo, presumindo-a relativamente).

 

891. Exige a lei brasileira de regência, como já se referiu, que a convenção pré-nupcial se instrumente por meio de escritura pública (art. 1.653 do Código de 2002), sob pena de nulidade. Insiste-se nessa exigência nos termos do art. já se anunciava essa exigência no art. 1.640 do mesmo Código de 2002, em que, depois de prescrever a supletividade do regime da comunhão parcial (“Não havendo convenção, ou sendo ela nula ou ineficaz, vigorará, quanto aos bens entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial” –caput), dispôs-se no parágrafo único: “Poderão os nubentes, no processo de habilitação, optar por qualquer dos regimes que este código regula. Quanto à forma, reduzir-se-á a termo a opção pela comunhão parcial, fazendo-se o pacto antenupcial por escritura pública, nas demais escolhas”. Essa prescrição de a escritura pública ser o instrumento exigível para os pactos pré-nupciais já constava do Código civil brasileiro de 1916 (art. 256), e, antes mesmo, era norma das Ordenações filipinas e do Decreto 169-A, de 19 de janeiro de 1890 (§ 9º do art. 3º: “Os dotes ou contratos antenupciais não valem contra terceiro: sem escritura pública…”).

 

A doutrina brasileira pode afirmar-se pacífica em entender justificada essa exigência de escritura pública, por, em palavras de Clóvis Beviláqua, nela tratar-se, com o pacto antenupcial, de “relações da mais alta importância (…); é a base econômica da família, que se estabelece; há interesses recíprocos dos cônjuges, interesses dos filhos, que se esperam, e, ainda, interesses de terceiros, que exigem a firmeza e a solenidade da escritura lavrada por notário” (Código civil dos Estados Unidos do Brasil, comentário ao art. 256, n. 3; disso não destoam, inter plures, Lafayette, Pontes de Miranda e Carvalho Santos, para mencionar alguns nomes).

 

Cabe sindicar, entretanto, as razões pelas quais se tem preservado a tradição jurídica nacional –e não custa dizer que essa previsão também frequenta muito e de há muito o direito estrangeiro– que impôs a adoção da forma notarial para os pactos pré-nupciais.

 

Para termos aqui uma conjectura, poderia o legislador do Código civil de 2002 ter escolhido a via facultativa de um instrumento de natureza privada registrável no ofício de títulos e documentos ou até mesmo considerado as muito proclamadas vantagens do arquivamento de documentos na esfera tecnológica. Elegeu, contudo, a preservação do que é tradicional em nosso direito.

 

É o de que trataremos a seguir.