Sobre o registro dos loteamentos urbanos e rurais (terceira parte)

 (da série Registros sobre Registros, n. 258)

                     Des. Ricardo Dip

 

  1. Depois de prescrever, para o registro especial do parcelamento do solo urbano −e já com prévia aprovação do projeto correspondente−, a exibição do título de propriedade do imóvel −ou de certidão de sua matrícula−, a Lei 6.766, de 1979, exige que se apresente o “histórico dos títulos de propriedade do imóvel, abrangendo os últimos 20 (vinte anos), acompanhados dos respectivos comprovantes (inc. II do art. 18).

              Ainda uma vez, a exemplo do que se observou acerca de símile exigência da Lei 4.591/1964 −que, para o registro da incorporação edilícia, prescreve a apresentação de “histórico dos títulos de propriedade do imóvel, abrangendo os últimos 20 anos, acompanhado de certidão dos respectivos registros” (alínea c do art. 32)−, prescrever a relação histórica dos títulos dominiais referentes ao imóvel parece exageração, quando, tal o caso, ela se exija acompanhada “dos respectivos comprovantes”, isto é, da certidão de seus correspondentes registros. É que, insista-se neste ponto, num sistema formal de registro, em que a aquisição da propriedade de imóvel depende, quando sua causa seja ato inter vivos, da inscrição constitutiva necessária de registro do título aquisitivo, e, quando se trate de ato mortis causa, de inscrição para fins de disponibilidade, não se vislumbra o interesse em resenhar de maneira específica um capítulo histórico daquilo que já está historiado pelas certidões do próprio registro.

              Por sua letra, o inciso II do art. 18 da Lei 6.766 não preceitua que os títulos sejam apresentados, mas, isto sim, que sejam historiados −vale dizer, resenhados, sumariados−, um relatório histórico, enfim, que se extrai do próprio registro de imóveis, mediante suas certidões (neste sentido, Vicente Celeste Amadei e Vicente de Abreu Amadei, o.c., p. 289, com remissão a doutrina cônsona de Gilberto Valente da Silva, p. 288).

              Como visto, o dispositivo em exame enuncia que o histórico dos títulos −e sua comprovação (o que se dará por meio de certidões do registro predial)−  deva abranger o prazo vintenário. Este prazo de 20 anos era no Código civil brasileiro de 1916 o tempo máximo da usucapião (art. 550), tempo esse que foi reduzido com o Código civil nacional, de 2002, assinando-o em 15 anos (art. 1.238). É controversa a questão do prazo que se haja de considerar para esse histórico e sua comprovação: de um ângulo, parecerá que o prazo de 15 anos, previsto no art. 1.238 do Código de 2002, atenda aos fins perseguidos com a redação do inciso II do art. 18 da Lei 6.766; mas, em outra perspectiva, o mesmo Código civil de 2002 prevê prazo vintenário para a usucapião extraordinária de servidões aparentes (art. 1.379: “O exercício incontestado e contínuo de uma servidão aparente, por dez anos, nos termos do art. 1.242, autoriza o interessado a registrá-la em seu nome no Registro de Imóveis, valendo-lhe como título a sentença que julgar consumada a usucapião. Parágrafo único. Se o possuidor não tiver título, o prazo da usucapião será de vinte anos”). Não custa acrescentar a crítica de Gilberto Valente da Silva, invocando a norma do art. 238 da Lei 6.015, de 1973 −“O registro de hipoteca convencional valerá pelo prazo de 30 (trinta) anos, findo o qual só será mantido o número anterior se reconstituída por novo título e novo registro“−, sustentando que, de lege ferenda, o prazo da certidão, para o registro especial do parcelamento, haveria de ser, de conseguinte, o trintenário.

              Examinando essas indicações, Vicente Celeste Amadei e Vicente de Abreu Amadei elegeram, prudentemente, solução compaginada com o texto da lei: “(…) havendo norma legal específica, impositiva do prazo de 20 (vinte) anos, para o período de abrangência do histórico dos títulos de propriedade do imóvel (artigo 18, II, da Lei nº 6.766/79), ela é a que tem incidência direta, afastando a aplicabilidade das demais, para o fim a que se destina. Daí, o prazo de 20 (vinte) anos é o que há de prevalecer para o fim de registro de loteamento ou desmembramento” (o.c., p. 287).

              Parece, com efeito, ser a solução mais provável, a que, por igual, já tendera, quanto à previsão da letra c do art. 32 da Lei 4.591, o entendimento de Flausilino Araújo dos Santos, embora acenando a fundamentos não aplicáveis ao quadro do parcelamento do solo.

          931. O inciso III do art. 18 da Lei 6.766 relaciona as certidões que devem apresentar-se para o registro especial do parcelamento: são as negativas (i) de tributos federais, estaduais e municipais incidentes sobre o imóvel; (ii) de ações reais referentes ao mesmo imóvel, pelo período de dez anos; (iii) de ações penais relativas a crimes contra o patrimônio e contra a administração pública. A esse rol acrescenta o inciso IV do mesmo art. 18 certidões (iv) dos cartórios de protestos de títulos, em nome do loteador, pelo período de dez anos; (v) de ações pessoais relativas ao loteador, também pelo período de dez anos; (vi) de ônus reais relativos ao imóvel; (vii) de ações penais contra o loteador, pelo igual período de dez anos.

              Como já ficou antes indicado (item 903) a certidão de tributos tem o objetivo de desvelar a realidade do status de determinado contribuinte diante da fazenda pública, que pode ser federal, estadual, distrital e municipal. Embora não o esclareça a Lei 6.766, deve entender-se que as certidões tributárias exigíveis para o registro especial do parcelamento sejam as relativas a impostos –não abrangendo, pois, outras categorias de tributos (taxas e contribuições de melhoria), nem o preço público−, resumindo-se, pois, ao imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana (Iptu; inc. I do art. 156 da vigente Constituição federal de 1988), além de, sendo o caso, exigir-se quanto  (i) a aforamento e (ii) na situação de o imóvel ter sido rural nos cinco exercícios imediatamente anteriores.

              Exige a lei sejam negativas as certidões tributárias. Vicente Celeste Amadei e Vicente de Abreu Amadei dizem que as certificações positivas impedem o registro especial: essas certidões devem “necessariamente ser negativas” (p. 290). No mesmo sentido, brevitatis causa, sustentam Toshio Mukai, Alaôr Caffé Alves e Paulo José Villela Lomar (in Loteamentos e desmembramentos urbanos, 2.ed., 1980, p. 85). Mas isso não exclui as certidões positivas com efeito de negativas.

              A certificação negativa simpliciter de débitos fiscais, prevista no art. 205 do Código tributário nacional, confirma a quitação dos tributos a que corresponda. Já a certidão positiva com efeito de negativa −certidão de regularidade fiscal, sem efeito de quitação−  não indica a inexistência de débito tributário, mas o status de quem, na pendência de dívidas fiscais, têm sua exigibilidade suspensa, assim prevê o art. 206 do mesmo Código tributário nacional: “Tem os mesmos efeitos previstos no artigo anterior a certidão de que conste a existência de créditos não vencidos, em curso de cobrança executiva em que tenha sido efetivada a penhora, ou cuja exigibilidade esteja suspensa”. Em reiteração (cf. item 903), lembremo-nos de que as causas suspensivas da exigibilidade do crédito tributário, elencadas no art. 151 do Código tributário são (i) a moratória (cf. arts. 152 et sqq.), (ii) o depósito do montante integral do débito, (iii) as reclamações e recursos ”nos termos das leis reguladoras do processo tributário administrativo”, (iv) a medida liminar em mandado de segurança, (v) a medida liminar ou tutela antecipada em demandas que não sejam de mandado de segurança e (vi) o parcelamento da dívida tributária.

          Ainda que haja com essas causas suspensivas da exigibilidade dos tributos o perigo de, quando cessadas, molestarem-se de modo grave as condições econômico-financeiras do parcelador, a mesma notícia da existência dos tributos −com exigibilidade suspensa− legitima a satisfação do requisito legal pela ciência que da situação fiscal objeto se propicie a futuros adquirentes de lotes.