Sobre o pacto antenupcial (sequitur)

(da série Registros sobre registros n. 230)

                                                           Des. Ricardo Dip

 

892. É preciso considerar as recorrentes críticas que se desfiam entre nós contra a exigência de escritura pública para o pacto antenupcial, sugerindo alguns, ao invés do documento público, a adoção de instrumento de natureza privada –talvez com seu registro em ofício de títulos e documentos.

 

Para logo reitere-se que essa exigência de escritura pública para as convenções pré-nupciais é tradicional em nosso direito e amplamente adotada pelos ordenamentos jurídicos estrangeiros.

 

Vejamos um só caso, a título de ilustração: o da Espanha. Com uma feição mais elástica do que a da norma brasileira, o pacto matrimonial é admitido no vigente Código civil espanhol –com a redação de 1981 (o Código é de 1889)– não só para estipular o correspondente regime econômico, mas também para modificá-lo ou substituí-lo (art. 1.325), prevendo-se possa a convenção celebrar-se tanto antes, quanto depois do matrimônio (art. 1.326: “Las capitulaciones matrimoniales podrán otorgarse antes o después de celebrado el matrimonio”). A despeito dessa ampla liberdade contratual albergada pelo direito espanhol em vigor –ou talvez, por outro aspecto, até mesmo em razão dessa amplitude da autonomia de vontades–, o Código prescreveu, para a validade do pacto, sua instrumentação notarial: “Para su validez, las capitulaciones habrán de constar en escritura pública” (art. 1.327).

 

Isso não se deve, por certo, ao menos no caso brasileiro, à conveniência da publicidade coram omnes, o que se resolveria por meio da inscrição no ofício de títulos e documentos, mas, isto sim, por o que tem de jurista a função exercida pelo notário latino.

 

Parece pedagógico, assim o fez Antonio Rodríguez Adrados, o paralelo entre a divisão dos sistemas de famílias jurídicas segundo René David (família romano-germânica, família anglo-saxã e família socialista) e os tipos de notariado, correspondendo, respectivamente, aos do notário latino, do notário do sistema da common law e do notário estatal ou administrativo (in Sobre las consecuencias de la funcionarización de los notarios, p. 48-49). Sem embargo das muitas diferenças particulares –pode mesmo falar-se, no espectro do notariado latino (p.ex., desde um notariado românico a um notariado hispânico, até chegar, mais pontualmente, a um notariado ao modo cartorial brasileiro), o fato é que, qualquer seja o tipo notarial que se adote, sempre –para bem ou para mal, para admitir o êxito do melhor desses sistemas (o latino) ou as imensas deficiências do pior deles (o administrativo)– resultará claramente extraível dos fatos da vida jurídica de cada país e, pois, de todo reconhecido, que, como disse o mesmo Rodríguez Adrados, “el Notariado es el más importante de los medios para la realización del Derecho en la normalidad”.

 

Logo às primeiras páginas de Hechos y documentos en el documento público, saiu-se Rafael Núñez Lagos com uma feliz boutade, dizendo que, ao avistar-se a tarefa documentária do notário, há quem o estime ao modo de uma máquina fotográfica, da mesma sorte que lavadeiras acreditem que o sol apenas sirva para secar as roupas (p. 4). Mas, se o notário elabora documentos, ele, todavia, é antes de tudo um jurista –“el notario debe ser, ante todo y sobre todo, hombre conocedor del Derecho” (Miguel Fernández Casado, Tratado de notaría, tomo I, p. 143): um professor (p. 144 e 146) que exerce um magistério vívido na sociedade. Sua função de jurista começa com a busca da verdadeira vontade dos clientes, para, quando o caso, ensinar-lhes o caminho prudente (Rodríguez Adrados  fala mesmo no exercício de uma pedagogía de la voluntad), com que, no exercício de sua missão profissional, o notário explica aos clientes “la normativa aplicable, y deshace sus errores y sus equívocos, de manera que su consentimiento pueda surgir de un conocimiento pleno”.

 

Prossigamos, a despeito da relativa largueza do texto, com as excelentes lições de Rodríguez Adrados, para quem o notário, em sua função de jurista,

 

“contribuye a la integración de la voluntad incompleta de las partes y, para ello, desarrolla funciones de clarificación de las distintas posiciones, de indicación de lagunas, de señalamiento de convergencias y de divergencias, actuales o posibles en lo futuro; funciones de sugerencia, de propuesta o de mera exposición de posibilidades para el logro de aquella integración v del perfecto consenso de las partes: funciones también de conciliador, e incluso de árbitro, cuyos dictámenes suelen ser aceptados precisamente porque vienen de persona que no ha sido impuesta -como es impuesto el funcionario «competente»-, sino que ha sido libremente elegida, y que ha hecho hábito de sus deberes de imparcialidad, de equidad, de ecuanimidad; previene de los peligros que pueden presentarse y de los acontecimientos que pueden interferirse; y señala los medios jurídicos de obviarlos, en la medida de lo posible: siempre hombre de experiencia, de buena fe, jurista práctico; no portador de ninguna función pública” (ibidem).

 

O tipo do notário latino –resultante de uma frutuosa gestação histórica muitas vezes secular, cujas raízes, mais intensa e proximamente, solidam-se nos albores da Alta Idade média– agrega as funções de assessoramento, redação e autenticação, de modo que esse notário não se reduz à tarefa de documentar, de redigir o dictum, senão que intervém no actum, à maneira de um terceiro imparcial “que actúa de consejero, asesor, componedor, previsor…” (Vallet), cumprindo duas importantes funções, a do respondere e a do cavere, sobre as quais expõe o mesmo Vallet nestes luminosos excertos seguintes:

 

[Sobre a função de respondere]: “es decir, resolver las dudas, dictaminar sobre las materias dudosas y aconsejar los caminos más adecuados para dar solución jurídica satisfactoria a las finalidades lícitas que se pretende llenar con el negocio jurídico que se emprende”;

 

[Sobre a função do cavere]: “es decir, prevenir, precaver para asegurar el cumplimiento de esas finalidades, evitando su frustración, buscando el punto de equilibrio entre los intereses en juego, garantizando todos, poniendo a las partes en pié de igualdad. Todo ello en función preventiva y cautelar” (“La función notarial”, in Revista de derecho notarial, CXXIIV, abril-junho de 1984, p. 317; consultada em separata).

 

Só à custa de desconhecer e menosprezar a relevante função notarial de jurista –de professor de direito, como por muito tempo era comum designar-se o notário– é que se remata em desconsiderar a importância da escrituração pública nas convenções antenupciais.

 

É fato que, num tempo tão propício a exagerações no uso –e abuso– da tecnologia, as indicações de aparentes vantagens, incluídas as de celeridade e custos, da produção e conservação eletrônica dos documentos, parecerão motivos sedutores em favor da burocratização notarial ou até mesmo do menoscabo do instrumento público em prol dos títulos privados e formulários. Mas é adivinhável o dispêndio dessa aventura –ou melhor: desventura– quando se considera a própria história do notariado, que se só fez latino mercê de uma larga e frutuosa experiência prática e do conhecimento jurídico especializado, a que veio agregar-se a fides publica. Antal Schütz disse com razão que os grandes homens são, de certa maneira, apenas um resumo do passado, e isso pode também dizer-se do notariado: o grande notariado há de ser, de algum modo, uma sinopse de sua própria e valiosa história.