Sobre o pacto antenupcial (sequitur)

(da série Registros sobre registros n. 231)

                                                           Des. Ricardo Dip

 

893. Como já ficou dito, no direito brasileiro vigente, o registro do pacto antenupcial deve efetivar-se no livro registro auxiliar (livro 3) do ofício predial (inc. V do art. 178 da Lei 6.015, de 1973), cuja atribuição geográfica –atribuição ratione loci– é, nos termos da normativa de regência, a “domicílio conjugal” (art. 244), além de prever-se a averbação do pacto nas matrículas (e, quando o caso, à margem das transcrições) referentes a imóveis ou direitos reais de qualquer dos cônjuges (item 1º do inciso II do at. 167 e art. 244 da Lei 6.015).

 

Tanto se vê, a competência ou atribuição territorial para o registro stricto sensu do pacto não é a do registrador do local em que se celebra o casamento, nem a daquele em que se situem imóveis dos cônjuges (critério, sim, para atrair as averbações do pacto). A indicação do domicílio não é requisito da escritura da convenção matrimonial, podendo suprir-se por declaração póstera dos cônjuges, sendo quando menos conveniente que o registrador –até porque o exame da própria competência é matéria de objeção– exija alguma sorte de comprovação do domicílio declarado. Não custa dizer que, entre a celebração escritural do pacto e o casamento, pode haver a mudança da intenção de domiciliarem-se os cônjuges em dado lugar, de modo que a indicação na escritura não prevaleça. Calha mais que, não havendo prazo legal para a promoção do registro do pacto, pode mesmo dar-se que, antes da inscrição, os cônjuges mudem de seu primeiro domicílio comum, matéria que adiante se examinará.

 

894. A remissão legislativa ao domicílio conjugal como indicativo de competência –ou atribuição– para o registro stricto sensu do pacto pré-nupcial já constava do Decreto 4.857/1939 (de 9-11), em dois dispositivos:

 

– no art. 198: “No livro Auxiliar do cartório do domicílio conjugal serão inscritas por, extrato ou integralmente, se a parte requerer, as convenções antenupciais com referência aos nomes dos cônjuges, data, cartório, livro e folha onde foi lavrada a escritura, e as cláusulas da convenção, sem prejuízo da averbação dos imóveis existentes e que forem sendo adquiridos, sujeitos a regime diverso do comum”;

 

– no caput do art. 278: “Serão inscritas as escrituras antenupciais, no livro auxiliar do cartório do domicílio conjugal, nos termos do art. 198, sem prejuízo da averbação obrigatória no lugar da situação dos imóveis existentes ou que forem sendo adquiridos e sujeitos a regime diverso do comum, com a declaração das respectivas cláusulas, para ciência de terceiros” (em ambas essas citações, o itálico não se encontra no texto original).

 

Essa indicação competencial repetia o constante do Decreto 18.542, de 24 de dezembro de 1928 (cf. arts. 191 e 264), decreto esse que regulamentou a Lei (ou Decreto legislativo) 4.827/1924 (de 7-2), e contra o qual decreto esgrimira Carvalho Santos a crítica de que esse regulamento ia além das atribuições que o legislador de 1914 concedera, por seu art. 11, ao Poder executivo.

 

Como quer que seja, superados os discutidos entraves com o Regulamento registral de 1939 (i.e., o Decreto 4.857), Serpa Lopes firmou-se na orientação de que a competência para o registro stricto sensu do pacto antenupcial é a do ofício imobiliário do primeiro domicílio do casal, acrescentando: “Se houver mudança de domicílio, sem que o registro haja sido feito, apesar disso entendemos subsistente a competência do oficial do lugar do primeiro domicílio do casal, pois a mudança posterior não pode afetar a situação jurisdicional fixada em lei” (in Tratado dos registos públicos, II, item 265).

 

Esse entendimento pode considerar-se tendencial na doutrina brasileira (nesse sentido, brevitatis studio, Ademar Fioranelli, Direito registral imobiliário, 2001, p. 66; Eduardo Sócrates Castanheira Sarmento Filho, Direito registral imobiliário, 2018, II, p. 464; Francisco Eduardo Loureiro, in VV.AA., coordenação de José Manoel de Arruda Alvim, Alexandre Laizo Clápis e Everaldo Augusto Cambler, Lei de registros públicos comentada, 2.014, p. 1.266), de maneira que a mudança de um primeiro domicílio conjugal, seja antes do registro do pacto, seja depois, não implica quer a alteração da competência correspondente àquele domicílio inaugural, quer a necessidade de realizar-se novo registro no domicílio sucessivo.

 

Contra esse entendimento levantou-se a opinião de Vitor Frederico Kümpel e Carla Modina Ferrari, para os quais devam facultar-se tantos sucessivos registros stricto sensu do pacto quantos sejam os domicílios que venham a ter os cônjuges: “(…) o primeiro registro já exaure nos efeitos constitutivos e oponíveis erga omnes, tornando-se desnecessários os demais. Dessa forma, embora o registro no primeiro domicílio conjugal seja suficiente para a produção dos efeitos perante terceiros, é desarrazoável impedir novo registro em outra circunscrição imobiliária quando houver requerimento expresso dos nubentes demonstrando a intenção de procedê-lo” (in Tratado notarial e registral, 2020, 5, tomo II, p. 2.773). Explicam esses autores que a faculdade de realizar um novo registro do pacto se justifica pela “facilitação para o usuário nas hipóteses em que, devido à longa duração do matrimônio, não tenha certeza acerca do referido registro ou, se foi feito, a serventia onde se encontra”, e rematam: “Nesse sentido, o segundo registro do Livro 3 permite mais celeridade ao usuário, dispensando a peregrinação nas serventias do país para localizar o documento” (ibidem).

 

Essa solução –em que pese a atender eventuais interesses particulares dos usuários do sistema registral– parece esbarrar, contudo, em que os atos suscetíveis de registrarem-se no ofício imobiliário são, segundo a normativa brasileira de regência, obrigatórios (art. 169 da Lei 6.015, de 1973). Além disso, calha ver que, sabendo-se, em geral, o primeiro domicílio dos cônjuges, sabe-se prontamente onde o registro do pacto se terá lançado, sem contar, quanto aos imóveis correspondentes, as averbações desempenharão seu papel informativo. Tanto mais agora, com a possibilidade de alteração do regime matrimonial de bens (§ 2º do art. 1.639 do Código civil brasileiro de 2002), não aparenta convir a reprodução dispersiva –ainda que não obrigatória– de um registro suscetível de modificar-se por averbamento, pois que a falta de averbação em dos cogitáveis registros sucessivos poderia redundar em contradição das inscrições.

 

895. Remanesce um tema a considerar no plano da competência para o registro (stricto sensu) do pacto, porque a lei se refere ao domicílio conjugal, o que a doutrina veio a compreender, tendencialmente, como primeiro domicílio dos cônjuges, restando ver, porém, como se dá a assinação dessa competência nos locais domiciliares em que haja mais de uma circunscrição predial.

 

Embora o art. 70 do vigente Código civil brasileiro não disponha expressamente que o domicílio corresponda à ideia de município, referindo-se a norma ao lugar onde a pessoa estabeleça residência com ânimo definitivo, não só é comum da linguagem –e o usus loquendi é um critério fundamental para compreender a realidade das coisas– a identificação do domicílio pela cidade em que se vive, senão que a leitura de outros dispositivos do mesmo Código (p.ex., o do par.ún. art. 74 e o do inc. II do art. 75) beneficia o entendimento de identificar-se, ordinariamente, o domicílio ao município em que alguém resida com ânimo definitivo.

 

O fato é que a lei não oferece critério expresso para definir a competência do ofício imobiliário na hipótese de multiplicidade de cartórios no município em que alguém se domicilie. Mais uma vez coube à doutrina –que é fonte do direito– compreender o significado normativo do termo complexo “domicílio conjugal” para concluir em que, com estas palavras de Walter Ceneviva, “o cartório de residência do casal, nas comarcas em que houver mais de um, é o da circunscrição onde esteja o primeiro domicílio dos cônjuges” (in Lei dos registros públicos comentada, 1979, p. 519).