Sobre o pacto antenupcial (concluditur)

(da série Registros sobre registros n. 232)

                                                           Des. Ricardo Dip

 

896. Passemos a examinar agora, brevemente que o seja, três questões: (i) a do prazo de validade do pacto pré-nupcial; (ii) a dos eventuais efeitos do casamento de um dos pactantes com terceiro; (iii) a da liberdade de incluir-se, no pacto, a renúncia a ulterior divórcio.

 

Não há na legislação civil brasileira vigente previsão de prazo algum de validade entre a elaboração do pacto antenupcial e seu correlativo matrimônio subsequente. Lê-se na doutrina de Arnaldo Rizzardo: “Admite-se que decorra, inclusive qualquer lapso de tempo. Mas os efeitos dependem da realização do casamento” (Direito de família, p. 565). Ressalve-se a hipótese de o próprio pacto indicar prazo certo para sua validade (Pontes de Miranda). Diversamente, o atual Código civil português prescreve prazo de caducidade –de um ano– para a convenção pré-nupcial, dentro nesse prazo, pois, devendo celebrar-se o casamento (art. 1.716). No mesmo sentido, prevê o art. 1.334 do Código civil espanhol: “Todo lo que se estipule en capitulaciones bajo el supuesto de futuro matrimonio quedará sin efecto en el caso de no contraerse en el plazo de un año”. Saliente-se, contudo, ser entendimento de Antonio Cabanillas Sánchez, o de que, “para evitar la caducidad de las capitulaciones prenupciales se podrá, antes de transcurrir el año, renovarlas mediante un nuevo otorgamiento a fin de alargar el plazo con vista a un matrimonio cuya celebración se retrasa” (“Las capitulaciones matrimoniales”, in VV.AA., coord. Gema Díez-Picazo Giménez, Derecho de família, p. 647).

 

O decurso de tempo irrazoável entre o acordo antenupcial e o casamento, entretanto, pode justificar o pleito declaratório de nulidade do pacto (Pontes de Miranda, Carvalho Santos, Arnaldo Rizzardo), mas essa nulidade “só se verifica –disse Carvalho Santos– quando a intenção das partes de abandonar seu projeto de casamento é certa, o que constitui uma questão de fato entregue à apreciação do julgador” (Código civil brasileiro interpretado, comentário ao art. 256).

 

897. Considere-se agora a hipótese de um dos pactantes contrair matrimônio com terceiro.

 

Inclina-se a doutrina a entender que, nesse quadro, haja caducidade do pacto; v.g., “caducará, sem necessidade de qualquer intervenção judicial, se um dos nubentes vier a falecer ou se contrair matrimônio com outra pessoa” (Carlos Roberto Gonçalves, Direito civil brasileiro, vol. 6, p. 465); também Arnaldo Rizardo, que estende a caducidade à hipótese de os pretendentes romperem o noivado (o.c., p. 565).

 

Lacruz Berdejo observou, a propósito, que o pacto supõe um casamento específico, e não qualquer casamento entre os mesmos pactantes. Por isso, uma vez dispostos os capítulos para um dado matrimônio previsto, não são idôneos para diverso casamento, ainda que entre os mesmos contratantes: “Supongamos –diz Lacruz– que, otorgados los capítulos, casa uno de los capitulantes con tercera persona, y que disuelto este primer matrimonio llega a casar con el otro capitulante. En tal caso, la celebración del primer matrimonio hace caducar los capítulos, que no podrían revivir sin una nueva voluntad: cualquier matrimonio celebrado después del primero ya no es el proyectado en el momento de concluirse los capítulos, antes de éste” (Derecho de família, p. 307).

 

898. Muito controverso –e de interesse atualíssimo– é o que empolga a possibilidade ou não de incluir-se, no pacto antenupcial, a renúncia dos cônjuges a recorrer ao divórcio.

 

Firmado em compreensão do disposto no inciso II do art. 257 do Código civil brasileiro de 1916 –que reputava não escrita a convenção pré-nupcial (ou cláusula dela) que contraviesse “disposição absoluta da lei”, e acenando ainda à referência de Clóvis Beviláqua à ideia geral de que os pactos particulares não podem alterar o que é de ordem pública, sustentou Carvalho Santos que do acordo antenupcial não poderia constar negativa do  “dispositivo que permite ao cônjuge pedir desquite” (o.c., comentário ao art. 257; por igualdade de razão esse entendimento deve estender-se ao tema do divórcio).

 

Essa previsão do inciso II do art. 257 de nosso Código civil anterior acolheu-se no art. 1.655 do Código de 2002, e, ao comentá-lo, Milton Paulo de Carvalho Filho ilustra as correspondentes vedações da lei, dos bons costumes e da moral: “a convenção não pode estipular sobre a ordem de vocação hereditária, dispensa dos deveres decorrentes do matrimônio (coabitação, fidelidade e assistência mútua), ou ainda, sobre a desnecessidade de outorga uxória no caso de alienação dos bens familiares” (Código civil comentado, coord. Cezar Peluso, p. 1766).

 

Rosa Maria de Andrade Nery invocou expressiva passagem do Esboço de Teixeira de Freitas, seu art. 560, em que se lê: “é livre a cada um exprimir sua vontade nos atos jurídicos, pelo modo que lhe aprouver, contanto que esse modo, com denominação própria, ou sem ela, não seja proibido por lei” (Instituições de direito civil, vol. V, p. 190). Ora, uma renúncia bilateral (note-se bem: não se propõe a defesa de interesses unilaterais) a divórcio ulterior, sobre não afligir a isonomia dos futuros cônjuges, não desatende à circunstância de que, numa situação póstera, nada obrigaria esses cônjuges a recorrer ao divórcio. É dizer, seria juridicamente possível –ou seja, lícito– renunciassem eles à dissolução do vínculo. E, se o podem fazê-lo num dado tempo futuro, por que não poderiam de logo pactuar de logo o que lhes é lícito aceitar ou não?

 

Adiante, a mesma autorizada jurista de São Paulo dirá que “o pacto regula o casamento antes, durante e depois de sua celebração e, ainda, depois de seu término. O pacto regula, em suma, o direito de se casar e de se divorciar” (p. 193), e prossegue: “…os nubentes podem ter interesse em regular as consequências do divórcio…” (id.).

 

Pedro José Maria Chiesa, em tese doutoramento aprovada na Universidad Nacional de Córdoba (Argentina), sustenta que a nulidade –ou ineficácia– da cláusula de um pacto pré-nupcial com afirmação do chamado “casamento definitivo” (ou seja, uma convenção de indissolubilidade matrimonial) vulnera três princípios jurídicos: (i) o da não discriminação arbitrária, ao impedir que alguns possam exercer a liberdade de escolha do matrimônio indissolúvel; (ii) o da dignidade, porquanto admitiria o repúdio conjugal sem causa; e (iii) o da liberdade, inibindo que a autodeterminação dos nubentes (cf. El derecho a la protección constitucional de las opciones matrmoniales definitivas, Tucumán, 2010, passim).

 

A questão é, sem dúvida, controversa, mas é preciso admitir que, em tempos como os da hora presente, nos quais se vê muitas vezes albergada a moderna tese do direito à felicidade –professada por John Locke–, a que concorre a liberdade negativa esgrimida por Hegel e que consiste, ad summam,   em que a vontade individual seja inteiramente livre em suas escolhas, não tendo outro critério a balizá-la que a mesma vontade, por que, tanto mais que sem explícito apoio em norma estatal, haveria de recusar-se a realização da autonomia dos indivíduos em decidir se seu casamento é dissolúvel ou indissolúvel?

 

Num momento em que a instituição mesma do casamento é tratada de modo sabidamente libertário, a ponto de abandonar-se seu conceito clássico –que provinha de autores pagãos ao tempo do direito romano–, por que não podem os nubentes pactuar que seu matrimônio será definitivo, sem a opção de desconstruir-se pelo divórcio? Enfim, um tema a considerar com resguardo da isonomia, da não discriminação e do respeito à liberdade humana.