Ativismo Judicial-Administrativo (segunda parte)

Insistamos um tanto sobre o tema da causa material do ativismo judicial-administrativo: consiste ela na redução ativista da normatividade de agir ao plano subjetivo (à consciência, mais acertadamente: à vontade– do actante) em real indiferença das leis, dos costumes e até dos usos.

              Indiferença de todas as leis: a lei, em rigor, é sempre uma ordenação racional, promulgada por quem tem o cuidado da comunidade e cujo fim é o bem comum. É este o conceito de S.Tomás: rationis ordinatio ad bonum comune, ab eo qui curam communitatis habet, promulgata (S.th., I-II, q. 90, art. 4, resp.).

              A lei, portanto, neste sentido clássico, é uma potestade imperativa que provém da razão prática e não da vontade; assim, a lei tem caráter cognitivo e ordenador, e a este conhecimento (que diz com a verdade) e ordenação deve submeter-se a vontade, que, apetite não cognitivo, recolhe a verdade da inteligência sob a forma de bem: com efeito, no âmbito do saber prático, o movimento dirige a ação ou a obra (o agir e o fazer, pois), versando os meios para executar o fim ou bem da vontade (cf. S.Tomás, In Met. Arist. Comment., n. 290). O primeiro princípio da razão prática –bonum est faciendum et prosequendum, et malum vitandum– supõe que o bonum se apreenda sob o modo de verum: o entendimento (prático) “não busca o saber puro, mas o saber em ordem ao agir” (Celestino Pires, Inteligência e pecado em Santo Tomás de Aquino, p. 218).

              Tal é que, explicando o aforismo quod principi placuit, legis habet vigorem –o que agrada ao rei, tem valor de lei–, disse S.Tomás: “…para que a vontade (…) tenha força de lei, é necessário que ela mesma seja regulada pela razão. E assim há de entender-se que a vontade do príncipe se constitua em lei. De outro modo não seria lei, mas iniquidade –alioquin voluntas principis magis esset iniquitas quam lex” (S.th., I-II, 1. 90, art. 1, ad3). Cícero já antes dissera que autoridade apartada da lei não tem valor de autoridade, e S.Isidoro, rex eris, si recte facias; si non facias non eris (in Etimologias).

              Indiferença de todas as leis: das leis tanto divinas, quanto humanas, conforme seu autor seja Deus ou os homens. Aquelas, as divinas, são as leis (i) eterna, (ii) divino-positiva (o Decálogo) e (iii) natural (a que ainda poderia acrescentar-se a lei do fomes). As humanas são as civis e as eclesiais. As leis eterna e natural podem ser leis meramente físicas (v.g., as leis da gravidade, as leis da biologia) e leis morais. As leis morais, por sua vez, podem ser monásticas (as da moral individual) e sociais, e estas, as sociais, leis simpliciter éticas (p.ex., não mentir) e jurídicas. As leis jurídicas têm por fundamentos o débito e a igualdade; o que é devido ou nocivo a outrem –i.e., aquilo que corresponde ao suum da célebre expressão suum cuique tribuere (daí que a mentira possa vedar-se juridicamente, se prejudica outro: assim, o falso testemunho e a calúnia).  As leis da religião podem dizer-se de algum modo jurídicas, porque participam da alteridade e do débito, embora não do fundamento da igualdade (igualdade inviável de os homens satisfazerem em relação a Deus).

              Prossigamos: a lei é objeto da prudência governativa, e sua utilidade para o gênero humano deriva de que, embora tenha o homem, por natureza, certa disposição para a virtude –homini naturaliter inest quædam aptitudo ad virtutem (S.th., I-II, q. 95, art. 1, resp.)–, necessita aperfeiçoá-la pelo hábito da disciplina, para o qual, em ordem à paz das comunidades, é necessária a instituição de leis, tal como já o indicara Aristóteles –“o homem, se é perfeito por sua virtude, é o melhor de todos os animais; se, no entanto, está apartado da lei, é o pior de todos eles” (Política, Bkk. 1.253 a 31), e antes dele, Platão, nas Leis (L. 9): “se os homens vivessem sem leis, em nada se diferenciariam das feras”, e depois de ambos, S.Cirilo de Alexandria: “ninguém que tenha cabeça se mostrará contrário às leis, nem aos legisladores” (Contra Juliano, L. 3 -apud Suárez).

              Insta-se com Suárez: “o homem é um animal social que, por sua natureza, exige vida civil e comunicação com outros homens; por isto é necessário que viva retamente não só como pessoa particular, mas também como parte da comunidade, e isto depende sobretudo das leis de cada sociedade” (De legibus, L. I, cap. III, n. 19).