(da série Registros sobre Registros n. 412)
Des. Ricardo Dip
1.228. A Lei 6.015 −que contém previsão de registro constitutivo do direito de superfície do imóvel urbano (item 39 do inc. I de seu art. 167)− também indica o averbamento da extinção desse direito, assim se lê no item 20 do inciso II do mesmo art. 167.
Já se tratou do tema do direito de superfície em explanação anterior desta série, mas não custa reiterar, a propósito, algumas poucas palavras. Até porque, com muito acerto, estampou um aforismo clássico: iteratio mater studiorum est.
Nosso vernáculo «superfície» provém do idioma latino: superficies, superficiei, que, como se avista, é um substantivo da quinta declinação, significando «face superior», «parte exterior», «o que está sobre o solo», «edifício», «construção» (remeto-me aqui ao que consta do Dicionário de Torrinha).
Na terminologia jurídica, superficies é o que está edificado, plantado, algo que, de qualquer modo, está unido inseparavelmente ao solo.
Nessa união inseparável deve pôr-se em destaque o discrimen entre o terreno ou solo (solum), que é um ente substancial, e a superficies, que é um seu acidente.
Os romanos deram-se muito bem conta disso, e consagraram a expressão de que superficies solo cedit −a superfície é acessório do solo; ou seja, a superfície é o que acede ao imóvel, seja o que nele se planta (plantatio), seja o que nele se constrói (ædificatio).
Assim, o acessorium solo cedit −o acessório cede ao solo−, ou, como se lê no Digesto, com Ulpiano: «Superficies ad dominum soli pertinet» −o plantado ou edificado pertence ao dono do solo. No mesmo sentido: cuius est soli, eius est usque ad cœlum et usque ad inferos −ao dono do solo pertence o que está acima do terreno até o céu e, abaixo, até o inferno (cf., a propósito, Álvaro D'Ors, Derecho romano privado).
Consequente dessa percepção de relacionamento entre duas categorias −substância (o solo) e acidente (a superfície)− é o reconhecimento da unidade jurídica do solo e das coisas nele implantadas (veja-se José de Oliveira Ascensão, Direitos reais), consagrando-se, em linha de princípio, sua inseparabilidade (ao fim, relativa, como se verá); repita-se: em princípio, porque é inviável o acidente existir sem sua correlata substância.
Todavia, é exatamente esse juízo superficies solo cedit aquilo que a um tempo indica a unidade solo-superfície e também a excepciona, ao admitir-se a autonomização jurídica da superfície, dissociando-se o solo e as construções ou plantações nele existentes (é dizer, acedidas, implantadas), uma dissociação que permite destacar, ao lado do domínio do solo (ou fundo), a titularidade de um direito real de coisa própria incorporada (implante) sobre coisa alheia.
1.229. O direito de superfície, tal como estabelecido em Roma e aplicado em Portugal, era adotado também desde os primórdios do direito que vigorava no território do Brasil colonial, isso para os fins de remediar o excesso de que ao dominus soli pertencesse o que ao terreno se incorporasse (superficies solo cedit).
Assim, ao admitir-se o direito do terceiro superficiário como direito sobre coisa alheia atendia-se à tradição jurídica que vinha desde os tempos romanos.
A Lei brasileira 1.237, de 24 de setembro de 1864, extinguiu entre nós o direito de superfície, por não o incluir no rol dos ônus reais.
Atente-se, a propósito, ao advérbio «somente» que se encontra à partida no art. 6º da referida Lei 1.237:
• «Sómente se considerão onus reaes:
A servidão;
O uso;
A habitação;
O antichrese;
O usofructo;
O fôro;
O legado de prestações ou alimentos expressamente consignado no immovel.»
Advindo o Código civil de 1916, tampouco na lista dos direitos reais nele acolhidos se achava o direito de superfície:
• «São direitos reais, além da propriedade:
VI - As rendas expressamente constituídas sobre imóveis.
A reintrodução do direito de superfície no ordenamento jurídico brasileiro deu-se com a Lei 10.257, de 10 de julho de 2001, o chamado Estatuto da cidade.
Essa normativa subconstitucional teve por objetivo o de atender, em pormenor, à política urbana a que se destinaram os arts. 182 e 183 da Constituição nacional.
Alistou-se, então, o direito de superfície, na Lei 10.257, como instituto jurídico e político propício à política urbana (alínea l do inc. V do art. 4º), isso ao lado de outros tantos institutos como o sejam a desapropriação, a servidão administrativa, as limitações administrativas, o tombamento, a usucapião especial de imóvel urbano, o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, concessão de uso especial para fins de moradia, a concessão de direito real de uso, a regularização fundiária, etc.
Preceituou-se, na mesma Lei 10.257, o registro do direito de superfície no ofício imobiliário competente:
• «O proprietário urbano poderá conceder a outrem o direito de superfície do seu terreno, por tempo determinado ou indeterminado, mediante escritura pública registrada no cartório de registro de imóveis» (art. 21; e, na sequência, os arts. 56 e 57 dessa lei incluíram, respectivamente, o item 39 no inc. I do art. 167 da Lei 6.015, e o item 20 no inc. II do mesmo art. 167).
Ressalte-se que a Lei 10.257 indica de maneira expressa a possibilidade da dissociação entre, de um lado, a titularidade jurídica do solo, e, de outro lado, a titularidade das construções ou das plantações nele acedidas:
• «O direito de superfície abrange o direito de utilizar o solo, o subsolo ou o espaço aéreo relativo ao terreno, na forma estabelecida no contrato respectivo, atendida a legislação urbanística» (§ 1º do art. 21). Prosseguiremos.