(da série Registros sobre Registros n. 427)
Des. Ricardo Dip
1.238. No exame que, reiterando caminho já trilhado nesta série «Registros sobre Registros», está a fazer-se acerca do disposto no item 27 do inciso II do art. 167 da Lei 6.015, de 1973, que trata da averbação da extinção da legitimação possessória, chegamos agora ao ponto de considerar o correspondente atual direito posto.
Já vimos −aqui reportada uma referência de Vitor Kümpel e Carla Modina Ferrari− que o nosso instituto da legitimação possessória se remete, diacronicamente, ao regime entre nós instituído pelo Reino de Portugal quanto à ocupação das terras do Brasil. Esse regime foi o das sesmarias, descendente histórico das presúrias ibéricas medievais.
Que foram essas sesmarias?
Definiram-nas as Ordenações filipinas, delas dizendo serem «propriamente as dadas de terras, casais, ou pardieiros, que foram, ou são de alguns Senhorios, e que já em outro tempo foram lavradas e aproveitadas, e agora o não são» (ao começo do título XLIII do Livro IV). «Casais» são casas de campo, e também lugarejo de poucas casas, o solar; «pardieiros» são casas velhas, ameaçando ruína, ou já arruinadas e desabitadas; «dadas de terras» −também ditas «datas territoriais»− são porções ou faixas de terra.
O vernáculo «sesmaria» derivou regressivamente, assim parece, de sesmar; sesmar é partir, dividir, demarcar terras. Pode ler-se no Elucidário de Viterbo: «A origem deste nome /sesmaria/ parece que se deve procurar em sesma (hoje sesmo) que era a sexta parte de qualquer cousa». A ser veraz esse entendimento, o étimo de «sesmaria» pode ser o latim seximus, opinião que indicou Marcelo Caetano. Diversamente, contudo, António Manual Hespanha opina que «sesmaria» deriva do latim cæsina, cæsinæ, um rasgão na superfície da terra pela relha do arado ou pela enxada.
Em rigor, à luz da definição expedida pelas Ordenações filipinas, nas dadas do Brasil, terras virgens, só impropriamente poderiam identificar-se sesmarias. Apenas por seu não aproveitamento é que as terras brasileiras recebiam a designação «sesmarias».
Como quer que seja, as Ordenações Filipinas concorriam com diversas Cartas Régias (de 1682, de 1695, de 1697, de 1698, de 1699, de 1771) e Provisões de 1743 para a regência das sesmarias do Brasil, que, segundo o Alvará de 5 de janeiro de 1785, constituíam parte do domínio da Coroa portuguesa, e eram concedidas sob a condição de cultivarem-se as terras. Da invenção (ou descoberta) −com a investidura dominial de Portugal por força de um título originário de apossamento−, as terras poderiam doar-se pelos donatários das capitanias, e, depois, pelos governadores e capitães–generais, mediante de cartas de sesmaria, com que se separavam do domínio público as terras que viriam a constituir-se como domínio privado (veja-se, a propósito, por muitos, a doutrina de Afrânio de Carvalho).
No plano do ius positum, essa situação persistiu até 1822, e o vazio posterior no âmbito legislativo foi preenchido com a Lei imperial 601, de 18 de setembro de 1850, decretada pela Assembleia brasileira e sancionada pelo Imperador Dom Pedro II, com seu regulamento, o Decreto 1.318, de 30 de janeiro de 1854, revogando-se a legislação sobre as sesmarias, disciplinando-se a venda e a posse das terras devolutas e públicas.
Vejamos agora −depois de, nas explanações imediatamente anteriores desta série «Registros sobre Registros« termos considerado as Constituições brasileiras de 1891, 1946, 1967 e 1969− o que consta da Constituição nacional de 1988, em seus arts. 183 e 191.
Lê-se nesse referido art. 183:
«Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1º O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.
§ 2º Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.
§ 3º Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.»
E no art. 191 do Código político brasileiro vigente:
«Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinquenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.
Parágrafo único. Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.»
Saliente-se, para logo, a vedação de os imóveis públicos serem suscetíveis de usucapião. Também alguns imóveis particulares podem não ser passíveis desse modo de aquisição, assim, por exemplo, os a que se refere o art. 3º da Lei 6.969/1981 (de 10-12): «A usucapião especial não ocorrerá nas áreas indispensáveis à segurança nacional, nas terras habitadas por silvícolas, nem nas áreas de interesse ecológico, consideradas como tais as reservas biológicas ou florestais e os parques nacionais, estaduais ou municipais, assim declarados pelo Poder Executivo, assegurada aos atuais ocupantes a preferência para assentamento em outras regiões, pelo órgão competente».
Insista-se: não se viabiliza a usucapião de bens públicos, e isso também enuncia o Código civil brasileiro de 2002 −«Os bens públicos não estão sujeitos a usucapião» (art. 102)−, esclarecendo serem públicos «os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem» (art. 98), bens esses que o mesmo Código civil classifica em seu art. 99:
«I - os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças;
II - os de uso especial, tais como edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias;
III - os dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades.
Parágrafo único. Não dispondo a lei em contrário, consideram-se dominicais os bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito público a que se tenha dado estrutura de direito privado.»
Todavia, e isto justificou nossa referência ao impedimento jurídico da usucapião de terras públicas, essa vedação aquisitiva não equivale a estorvar a aquisição de terras pela posse de particulares, nos termos acolhidos pela Constituição de 1988, na sequência da tradição constitucional brasileira de 1934, de 1937, de 1946 com o acréscimo a seu art. 156, segundo o texto da Emenda constitucional 10/1964 (de 9-11):
«Todo aquele que, não sendo proprietário rural nem urbano, ocupar, por dez anos ininterruptos, sem oposição nem reconhecimento de domínio alheio, trecho de terra que haja tornado produtivo por seu trabalho, e de sua família, adquirir-lhe-á a propriedade mediante sentença declaratória devidamente transcrita. A área, nunca excedente de cem hectares, deverá ser caracterizada como suficiente para assegurar ao lavrador e sua família, condições de subsistência e progresso social e econômico, nas dimensões fixadas pela lei, segundo os sistemas agrícolas regionais.»
Daí que caiba, neste passo, indagar quais bens podem ser objeto material da legitimação de posse. E a isso dedicaremos nossa próxima exposição.