Des. Ricardo Dip
Aludimos já, em breve referência, à diversidade de correntes relativas não só, mas também, à compreensão dos fatos no processo discursivo de determinação jurídica. Daniel Serpentino dividiu-as, com abstração de matizes, em formalistas e realistas, quanto a estas últimas distinguindo (i) o realismo americano, o escandinavo e o genovês, correntes iuspositivistas, (ii) o realismo do pragmatismo econômico (assim, o da corrente da análise econômica do direito), (iii) o construtivismo interpretativo e (iv) o realismo dito clássico, i.e., o realismo do iusnaturalismo tradicional, corrente a que Serpentino dedicou páginas admiráveis (cf. Segurança jurídica e determinação do direito, São Paulo, Lepanto, 2024, p. 420-483).
Antes de prosseguirmos no assunto, convém um breve parêntese.
Primeiro, para observar que a expressão «direito natural», abrangendo tanto o nome de uma disciplina (ou de uma doutrina), quanto o de seu objeto, não tem significação unívoca. Bastaria considerar os plausíveis recortes de etapas em sua trajetória histórica, assim os da classificação de Eustaquio Galán y Gutiérrez (Ius naturæ, Madrid: 1961):
• desde o período patrístico, do século I ao século V d.C., seguido
• do período da escola medieval cristã, que é a época áurea do iusnaturalismo, período iniciado com S.Agostinho e culminante em S.Tomás de Aquino;
• de uma terceira etapa: a Escola espanhola do século XVI (Francisco de Vitoria, Martín de Azpilcueta, Domingo de Soto, Vázquez de Menchaca, Diego de Covarrubias, Domingo Báñez, inter plures); essas três etapas podem agrupar-se sob o nome «direito natural (genuinamente) cristão»;
• do período da escola racionalista, que é o tempo do racionalismo secularizante (Grotius, Hobbes, Spinoza, Locke, Pufendorf, Leibniz, Vico, Rousseau);
• do idealismo alemão (Kant, Fichte, Schelling, Hegel);
• da negação do direito natural, com a Escola Histórica (Hugo, Savigny, Puchta) é um movimento hostil ao direito natural racionalista, e com o positivismo, este sim, absoluta negação do direito natural;
• enfim, com o período do nascimento da ciência jurídica europeia, em que se acena a um “direito natural de novo estilo” (Rudolf Ihering).
Na linha da corrente iusnaturalista tradicional −que permaneceu ao largo dos séculos e que, no Brasil, teve seu máximo expoente com o pensamento do mais profundo de nossos jusfilósofos, o paulista José Pedro Galvão de Sousa−, Juan Vallet, a cuja obra se remeteu Daniel Serpentino, dedicou extensa e profunda apreciação acerca do conhecimento das coisas e das ideias.
Isto é o que exatamente nos interessa aqui, para tratar da compreensão dos fatos no processo de determinação jurídica.
Aponta o autor (e não é demais repetir que Juan Vallet foi um notário modelar) que há dois dualismos na base de nosso assunto:
• na perspectiva ontológica (referência ao ser): espiritualismo e materialismo;
• no aspecto gnosiológico (referência ao conhecimento): idealismo e realismo.
Trataremos de confrontar esses pares de categorias na próxima explanação.
