Des. Ricardo Dip
Depois de termos incursionado no conceito de «compreensão da lei» −compreensão do texto e da norma−, passamos a tratar da segunda quase-parte do processo de determinação jurídica, que é a «compreensão do fato», e trouxemos à consideração dois pares de relevantes categorias para a apreciação deste nosso capítulo. Esses pares consistem, na lição de Juan Vallet, «espiritualismo-materialismo» e «idealismo-realismo».
Quanto ao primeiro desses pares −«espiritualismo-materialismo»−, há atitudes excessivas, assim a que, ao admitir o espiritualismo, afasta radicalmente a materialidade das coisas, e também a que, materialista, recusa a espiritualidade. Cabe, ao revés, afirmar a convivência da matéria e do espírito na realidade das coisas, sem excluir um e outra, sequer as separando como as cindiu, por exemplo, René Descartes, como se a res cogitans (o mundo do pensamento) se contrapusesse à res extensa (o mundo material).
Fácil é observar que grande parte de nossos hábitos são de caráter espiritual. Pensemos, a propósito, nas virtudes intelectuais −assim, v.g., a prudência e a ciência− e nos hábitos morais (p.ex., a justiça e a temperança), para logo concluirmos por sua espiritualidade. Por outro lado, aí está, a nossos olhos, a evidência da corporeidade de muitíssimas coisas.
Quando se considera, no processo de determinação jurídica, em que consiste a «compreensão de fatos», é preciso ter em conta a noção de «coisa». Os fatos são coisas. Mas que se há de entender como «coisa»?
Numa primeira e mais ampliada significação, «coisa» é o mesmo que «ente» (indicação apropriada do que, alguma vez, vem referido como «ser»). Já num aspecto mais estreito, «coisa» é o mesmo que «ente corpóreo», ente que possui matéria.
Deixando aqui à margem a distinção entre «coisa» e «pessoa», segundo a qual «coisa» é tudo o que não é «pessoa», consideremos o apontado conceito mais abrangente do que seja «coisa», para nele compreender a integralidade das res naturæ, tanto, portanto, as coisas materiais (as res extensæ cartesianas), quanto as espirituais, as substâncias e os acidentes, as causas, as circunstâncias, os próprios homens −quer individualmente, quer socialmente−, e tudo isso seja numa perspectiva estática, seja no aspecto dinâmico.
Salienta-se, entre os aludidos acidentes, o de relação −pelo qual uma coisa é ser para outra coisa−, o que importa sobretudo quanto à consideração da ordem hierárquica dos entes. Se cada coisa tende à consecução de seu próprio bem (ou seja, de seu fim) −em outras palavras, cada coisa inclina-se a satisfazer sua própria natureza (seu bem particular)−, já o conjunto das coisas se subordina a uma ordem −a uma certa redução à unidade na pluralidade−, de maneira que se atenda à finalidade conjunta de todas as coisas (bem ou fim universal). As res naturæ inclinam-se, pois, à satisfação da natura omnium rerum, segundo a ordem constante do universo e a direção das coisas para seu fim (em outros termos, «governo»).
Destaquemos ainda que, ao lado da permanência −ou estática− da substância de cada coisa criada, há também algo sujeito ao câmbio, ao movimento, de tal maneira que compreender uma coisa −é dizer, em nosso caso, compreender um fato− é compreendê-lo não só em sua substância (a coisa em si, o fato em si), mas também em seus acidentes, em sua causalidade (incluída a causa final), em suas circunstâncias, com suas relações, naquilo que permanece e naquilo que muda.
Tal o disse Vallet, “el río no es solo el agua que pasa (…) sino también su fuente, el cauce, las orillas, su desembocadura (…) y su situación geográfica».
Prosseguiremos.
