(da série Registros sobre Registros n. 435)
Des. Ricardo Dip
1.246. Ao tratarmos da matéria do item 30 do inciso II do art. 167 da Lei 6.015 −referente à “sub-rogação de dívida, da respectiva garantia fiduciária ou hipotecária e da alteração das condições contratuais, em nome do credor que venha a assumir essa condição nos termos do art. 31 da Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997, ou do art. 347 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil)”−, observamos que o texto legal contém expressa ressalva do “disposto no item 35” desse mesmo inciso II.
A ressalva diz respeito ao averbamento “da cessão de crédito ou da sub-rogação de dívida decorrentes de transferência do financiamento com garantia real sobre imóvel, nos termos do Capítulo II-A da Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997”.
Ainda uma vez, trata-se de previsão incluída com a Lei 14.382, de 27 de junho de 2022, normativa do Sistema eletrônico dos registros públicos -Serp.
Como já se adiantou quanto ao mencionado item 30, também o item 35 se remete, de algum modo, às normas do art. 31 da Lei 9.514/1997 (de 20-11) e ao art. 347 do Código civil brasileiro de 2002, preceitos que concernem à sub-rogação convencional, mas que, de maneira explícita, a Lei 14.382, ao inovar neste passo a Lei 6.015, reporta-se ao Capítulo II-A da Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997. Esse capítulo foi incluído na Lei 14.382 com a Lei 12.810. de 15 de maio de 2013, e versa o refinanciamento de dívida imobiliária com garantia real em que haja transferência de um a outro credor.
O aludido Capítulo II-A da Lei 9.514 abrange os arts. 33-A a 33-F, lendo-se no primeiro deles: “A transferência de dívida de financiamento imobiliário com garantia real, de um credor para outro, inclusive sob a forma de sub-rogação, obriga o credor original a emitir documento que ateste, para todos os fins de direito, inclusive para efeito de averbação, a validade da transferência”.
O disposto no item 35 contempla duas hipóteses:
• a de transferência −de um credor a outro− da dívida imobiliária financiada (lê-se, a propósito, no art. 28 da Lei 9.514: Art. 28. A cessão do crédito objeto da alienação fiduciária implicará a transferência, ao cessionário, de todos os direitos e obrigações inerentes à propriedade fiduciária em garantia”), e
• a de sub-rogação dessa dívida −vale dizer, a substituição do credor original por terceiro que solve o débito (tenha-se em conta o enunciado do art. 31 da Lei 9.514: “O fiador ou terceiro interessado que pagar a dívida ficará sub-rogado, de pleno direito, no crédito e na propriedade fiduciária”).
O documento a que se refere o art. 33-A da Lei 9.514 −cuja emissão se impõe ao credor primitivo, que tem o prazo de dois dias úteis para emiti-lo, prazo esse contado no dia útil seguinte “após a quitação original” (par. único do mesmo art. 33-A)−, repete-se: esse documento é o título que deve apresentar-se para a averbação prevista no item 35 do inciso II do art. 167 da Lei 6.015.
Observe-se que a mesma Lei 9.514 contém norma que dispensa a expedição desse documento: “O disposto nos arts. 33-A a 33-E desta Lei não se aplica às operações de transferência de dívida decorrentes de cessão de crédito entre entidades que compõem o Sistema Financeiro da Habitação, desde que a citada transferência independa de manifestação do mutuário”.
Tem a averbação desse documento efeito de publicidade-notícia, ou seja, não constitui um novo direito, sequer o declara, senão que o anuncia de maneira ampla, visando à salvaguarda não somente dos interesses particulares, mas, indo além, das próprias higidez e credibilidade do sistema financeiro imobiliário. É bem verdade que a liberdade econômica −ou, na perspectiva do direito registral, a dinâmica ou liberdade de tráfego− não deve, em princípio, padecer de obstáculos por interferência estatal, como se dá, frequentemente, com os excessos regulatórios que terminam por levar ao clandestinismo imobiliário.
Além, com efeito, da consideração, a propósito, de normas de caráter natural, anteriores a toda legislação positiva, não é excessivo lembrar que, entre nós, a Constituição em vigor, já em seu preâmbulo, destaca expressamente o valor da «liberdade», cujo exercício o Código político se propõe assegurar.
A liberdade de atuação econômica −e não estaria demais invocar o disposto no caput do art. 5º da mesma Constituição brasileira de 1988: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (…)”− possui indicação expressa na vigente Constituição nacional: “ É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei“ (par. único do art. 170) compreende as liberdades de iniciativa, de concorrência e de contratação. Quanto às primeiras, diz-nos Eros Roberto Grau:
• a livre iniciativa compreende liberdades públicas: uma, «faculdade de criar e explorar uma atividade econômica a título privado»; outra, a da «não sujeição a qualquer restrição estatal senão em virtude de lei»; e
• a livre concorrência, liberdades privadas: a de «conquistar a clientela, desde que não através de concorrência desleal»; a «proibição de formas de atuação que deteriam a concorrência»; e «a neutralidade do Estado diante do fenômeno concorrencial em igualdade de condições dos concorrentes» (A ordem econômica na Constituição de 1988, ed. Malheiros, 16.ed., São Paulo, 2014, p. 202).
Prevê nosso Código civil que a “liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato” (art. 421), e, assim, algo de interferência estatal, sem embargo das disposições da Lei 13.874/2019 (de 20-9), a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, termina por admitir-se, até para evitar o caminho trágico do laissez faire, laissez passer.
Todavia, não percamos de vista que a primeira função social do contrato está exatamente no exercício da autonomia das vontades dos contratantes.
