(da série Registros sobre Registros n. 438)
Des. Ricardo Dip
1.250. Continuemos a considerar o disposto no art. 168 de nossa Lei 6.015, dispositivo que assim enuncia: “Na designação genérica de registro, consideram-se englobadas a inscrição e a transcrição a que se referem as leis civis“.
Já vimos na exposição anterior que, oportunamente, o legislador, adotando uma significação peculiar para a matéria, entendeu ser caso de exprimir que o conceito de «registro», segundo a Lei 6.015, compreende as noções de «transcrição» e «inscrição», constantes das leis civis.
Há algo mais, entretanto, que deve apreciar-se.
Existe, ao lado dessa terminologia estritamente indicada no art. 168 da Lei 6.015, um uso costumeiro, entre nós, do vocábulo «registro». Isso é um fato, um fenômeno linguístico.
Gregorio de Altube, notário espanhol morto em 1969, escreveu um livro intitulado El paisaje como fuente del derecho. E essa referência vem a calhar quando se pensa, com uma lição de Joaquín Costa, na «muda linguagem dos fatos»; ouçamos o que disse esse autor: “las leyes que nosostros escribimos en el mudo lenguaje de los hechos son más firmes e incontrastables, porque son también más verdaderas porque están fundadas en la naturaleza” (apud Juan Vallet de Goytisolo, Manuales de metodología jurídica, Madrid, ed. Fundación Cultural del Notariado, 2004, vol. III, p. 23).
Poderá objetar-se que esse uso popularizado da palavra «registro» seria apenas algo trivial, um ramerrão (veja-se, a propósito, João Ribeiro, Frases feitas -Estudo conjetural de locuções, ditados e provérbios, Campinas, ed. Livre, 2024, p. 10), mas um temperado acercamento dos fenômenos da língua (escrita e falada) leva-nos a admitir ser frequente existirem usos linguísticos normais e rotineiros em um determinado grupo geográfico (norma diatópica, na indicação do consagrado linguista romeno Eugeniu Coșeriu), ou em grupos de mesma idade, símile nível econômico, de sexo (norma diatrástica), bem como usos linguísticos normais e costumeiros utilizados por falantes em determinadas situações da vida (norma diafásica). Isso relaciona-se com a pragmática (cf. Evanildo Bechara, VV.AA., Na ponta da língua, 2000, vol. 2, p. 92, e, no mesmo livro, Sílvio Elia, p. 115 e 161).
Voltemos ao núcleo de nossas considerações.
O termo «registro» −visto agora só em seu uso no ambiente extrajudicial− é análogo, ou seja, possui distintos significados em que se tem a semelhança de uma coisa significada com outra.
Assim, com esse vocábulo «registro», na praxis extrajudicial, usa-se significar: (1) o lugar, o locus ubi, o local onde se efetivam os atos de registro; (2) a atividade de registrar; (3) o ato mesmo, em geral, resultante da atividade de registrar. São do uso trivial, por exemplo: “Mateus trabalha no registro aqui da cidade”; “Joaquim está agora fazendo um registro”; “José já tem o registro de seu pacto antenupcial”.
Desta maneira, a significação do conceito verbal «registro» −note-se bem, na prática mesma do direito extrajudicial− vai além dos limites indicados no art. 168 da Lei 6.015.
Convém insistir: o termo «registro» compreende tanto a atividade de registrar, quanto o ato correspondente. E neste passo, o «registro» atende ao princípio que, classicamente, é chamado de «princípio da inscrição».
Ora num primeiro aspecto, lato sensu, «registro» compreende, pois, o registro stricto sensu e a averbação; e esse uso de «registro» traduz a ideia de «escrito».
Já agora, então, num segundo aspecto, devemos considerar o termo «inscrição», que se alça ao plano geral, desvestindo-se das características mais estreitas que ele possuía, por exemplo, em nosso Regulamento registral de 1939 ou no Código civil brasileiro de 1916. E isto está muito bem.
Com efeito, já o deixamos dito, nosso vernáculo «inscrição» deriva do supino do verbo latino inscribo −vale dizer, de inscriptum−, de que resultou o substantivo de terceira declinação inscriptio, significando escrito, marcado, assinalado, gravado, registrado, mas também não escrito −porque o prefixo latino «in» também atua com o modo de negação.
«Inscrição» é «sinal»; «inscrever» é «sinalizar».
O sinal ou signo é o que serve de meio para o conhecimento de alguma coisa. O sinal é, pois, um significante que remete a um ente sinalizado ou significado.
Recordemos, em reiteração, o que ensinou Aristóteles: o sinal é um meio expressivo e comunicativo: por primeiro, de conceitos, e, depois disso, das coisas compreendidas nesses conceitos. Está dito no Perihermeneias, que as palavras escritas (e palavras são signos) expressam as palavras orais −e ambos esses modos de palavras, orais e escritas, são um código variado na vida humana, variado segundo os tempos e os lugares. Mas se as palavras, de fato, não são idênticas, elas expressam, todavia, na variação de sua historicidade, as universais paixões da alma humana, e, também universais, as coisas de que as paixões são imagem.
Por isso, é possível a comunicação humana, embora as palavras, orais ou escritas, não refiram, diretamente, as coisas do universo, senão que exprimam as paixões da alma que são comuns a todos os homens, paixões essas que se formam por impressão das coisas que, por igual, são comuns ao conhecimento de todos os homens.
Essa lição aristotélica é um antídoto (historicamente prévio) contra o nominalismo que surgirá no Medievo baixo e contaminará grande parte do pensamento moderno e contemporâneo.
Tal pode observar-se, a inscrição (ou “escrição”) nos registros públicos não evita as dificuldades gerais da linguagem, a que se devem ainda acrescentar alguns problemas especiais.
Já o fizemos ver: esses problemas começam pelo fato de os signos textuais das inscrições tabulares −tendo estas de ser claras e certas− padecerem de uma atração contraposta: por um lado, o registro parece convocado pela linguagem comum, linguagem que, em vista de sua maior clareza, pode ser entendida por todos ou quase todos, sem exigência de conhecimentos jurídicos específicos; mas, por outro lado, a inscrição de ser certa, vocacionando-se, pois, a uma linguagem específica, a jurídica, que, à conta de seu caráter mais técnico, avantaja-se em precisão relativamente à linguagem comum.
Como concluíamos em exposição anterior: “Não é possível, entretanto, que de todo se busque a precisão do linguajar sem atender às necessidades da comunicação. O registro não é um artefato para especialistas em direito, arquitetura, urbanismo ou engenharia. É um ente instrumental da segurança comunitária, formador de certezas para todos da comunidade −assim, deve o registro apropositar-se ad popularem sensum.”
