Sobre a determinação jurídica extrajudicial (parte 15)

             Des. Ricardo Dip

Podemos já, neste nosso capítulo sobre a determinação jurídica extrajudicial, transitar dos aspectos gerais ou, por outro ângulo, propedêutico, para tratar especificamente da determinação jurídica notarial.

           Já vimos que o processo de determinação jurídica −é dizer, de definição da coisa justa, da res justa singular− pode ser instantâneo, súbito, ou deliberado, refletido. Quando se trata desse modo meditado da determinação da coisa justa é que se vê mais claramente a divisão de etapas desse processo discursivo, assim (1) a fase da compreensão da lei (ou seja, compreensão do texto e compreensão de seu significado normativo), (2) a fase da compreensão do fato, (3) a da interpretação e (4) a da conclusão −ou seja, da determinação jurídica já agora como ato consequente e não como processo.

           Os juristas −termo que vem sendo substituído pela expressão «operadores do direito», com que se tramita, muitas vezes sem advertência, para a poietização do direito−, mas dizíamos, os juristas atuam na determinação jurídica por diferentes modos. Mas, antes mesmo de considerarmos esses modos de atuação dos juristas, é preciso dizer que de maneira muito mais frequente a coisa justa se realiza por não juristas, com a determinação jurídica que se dirá comum, não especializada, profana. É o que se dá com o agere cotidiano: a compra e venda de pãezinhos na padaria, a espórtula que se deposita nas Missas dominicais, o silêncio na madrugada para respeitar o direito de repouso, etc.

           Aos juristas reservam-se outros modos. Assim, o postulare, atividade própria do advogado, do promotor público, do defensor público; o ministrare, a prática da administração; o iudicare, a arte de julgar, própria dos juízes; o respondere e o cavere

           Aqui nos detemos um tanto: respondere e cavere, porque esses dois modos de determinação jurídica da coisa justa, se bem não sejam exclusivos dos notários, são as maneiras como eles são chamados a atuar propter officium.

           O ius respondendi −o direito de responder consultas− já teve seus tempos de reconhecido esplendor, em Roma e na Idade média, e sabe-se que, ao menos desde os fins do século XIII, a atividade de respondere era também própria dos notários (já, p.ex., em 1341, entre os iurisperiti Valentiæ contam-se quatro notarii consiliarii −cf. José Bono, Historia del derecho notarial español, Madrid, ed. Junta de Decanos de los Colégios Notariales de España, 1982, tomo I-2, p. 188). Deu-se mesmo, no Medievo, que as respostas dos consiliatores vinculassem os juízes, porque não era incomum, então, os juízes desconhecerem os saberes jurídicos e, em alguns casos, fossem até analfabetos.

           No período do ius commune, não eram os juízes que criavam o direito, mas os jurisconsultos, com seus pareceres. Esse é o período dos pós-glosadores ou comentaristas, a quem se atribui a fundação da verdadeira ciência jurídica, porque, em palavras de Sebastião Cruz, “o comentário penetra no sensus da norma, enquanto a glosa se preocupa unicamente com a littera da norma” (Direito romano, Coimbra, 4.ed., 1984, tomo I, p. 98). Especificamente, quanto aos consiliatores, foi tal sua importância que Franz Wieacker, em sua célebre História do direito privado moderno, apontando que eles eram contemporâneos dos “grandes italianos da aurora da época moderna”, foram, tanto quanto Dante, Giotto e Petrarca, “os arquitetos da modernidade europeia” (Lisboa, ed. Calouste Gulbenkian, 1967, p. 80). Entre esses arquitetos, os notários.

           Prosseguiremos.