(da série Registros sobre Registros n. 442)
Des. Ricardo Dip
1.253. Lê-se no art. 170 da Lei brasileira 6.015, de 1973: “O desmembramento territorial posterior ao registro não exige sua repetição no novo cartório”.
Trata-se aí de regra relativa à preservação da eficácia de registros efetuados em ofício imobiliário que, posteriormente, em virtude de mudança de competência territorial, já não detém atribuição para a prática de inscrições relativas a dado imóvel.
Essa regra, em rigor, soa ao modo de superfetação, bem considerado, a generali sensu, o que dispõe o art. 252 da mesma Lei 6.015: “O registro, enquanto não cancelado, produz todos os efeitos legais ainda que, por outra maneira, se prove que o título está desfeito, anulado, extinto ou rescindido”.
Alterada a competência geográfica de um dado cartório, os registros que nele se efetuaram mantêm-se eficazes, ausente a necessidade de sua repetição no “novo cartório”.
É evidente que a letra desse art. 170 não é das mais apropriadas. Há pelos menos duas impropriedades literais a apontar. A primeira delas está na referência textual a “novo cartório”, conceito que deve compreender-se como de cartório com a sobrevinda competência, independentemente de esse cartório ser de nova ou velha instituição.
Da segunda impropriedade em seguida se tratará.
1.254. O dispositivo em exame não interdita que se reitere a inscrição no ofício detentor da nova competência. O que faz a lei é dispensar de exigibilidade a repetição dos atos, isto é, não a impõe: “O desmembramento territorial posterior ao registro não exige sua repetição no novo cartório”.
Nada impede, entretanto, que se proceda a uma reiteração do conceito de algumas inscrições anteriores. Aqui deve advertir-se, portanto, uma segunda impropriedade do texto desse art. 170: é que não se trata propriamente de uma repetição de atos, note-se bem. O de que se cuida, isto sim, é de uma reiteração de conteúdo, de notas compreensivas, e não do próprio ato formalmente lançado no ou nos registros anteriores.
É dizer, no plano prático, que pode abrir-se matrícula no cartório de competência superveniente, averbando-se as inscrições dotadas de eficácia atual.
De não ser assim, o novo registro implicaria inadmissível bis in idem com o precedente, já que este possui eficácia bastante.
1.255. Poderiam objetar-se algumas aparentes exceções a essa mera reiteração de conceito de inscrições precedentes. Por exemplo, quando se trate de a nova inscrição lançar-se com algum caráter retificador, seja positivo (acréscimo de dados), seja negativo (supressão de indicações); isto inclui, por manifesto, a possibilidade hipotética das retificações mistas.
Isso não está vedado pelo sistema regulativo. Não se proíbe que a reiteração seja parte do novo lançamento.
Outra hipótese −esta, reconheça-se, bastante controversa− é a de a reiteração registrária conceitual ter efeito saneador.
Vamos a um caso concreto ocorrido em São Paulo: era a década de 80 do século passado; cerca de dez mil matrículas, nas quais lançados registros e averbações, maculavam-se de vício de competência territorial.
De maneira ortodoxa, seria caso de determinar a nulidade absoluta dessas matrículas.
Isso implicaria, contudo, vários consequentes malignos: desde o dispêndio de tempo, de esforços e de gastos financeiros para os aparentes legitimados registrais, forçados a renovar, nos cartórios competentes, os registros dos títulos aquisitivos; passando ainda pelo risco de antigos proprietários alienarem os imóveis a terceiros antes das providências de renovação; e, no fim e ao cabo, chegando à evidente má repercussão institucional, com a perda da confiança na garantia propriamente oferecida pelas entidades registrais.
As situações que fogem do comum −id quod raro accidit− reclamam soluções que também escapem, com muita discrição embora, das decisões que só atendam ao ordinário, ao frequente, ao que plerumque accidit.
Uma coisa é decidir prudencialmente aquilo que corresponde ao rotineiro. Isto é próprio da virtude da sínese, que é uma anexa do hábito da prudência. Outra coisa, no entanto, é decidir prudencialmente algo que não se molda ao ordinário das coisas; e isto exige outra das virtudes anexas ou virtuais da prudência, qual seja, o hábito intelectual da gnome.
Claro está que, tratando-se de decisões singulares, mais ainda de decisões sobre fatos excepcionais, o máximo que se pode almejar é o de uma certeza moral sobre o juízo decisório. Mas, ainda que se trate apenas de uma certeza relativa, é possível ancorá-la em premissas razoáveis, descobertas na realidade das coisas, e chegar a um resultado mais ou menos provável.
No caso que estamos a referir, adotou-se a solução de bloqueio das matrículas inauguradas com vício de competência, autorizando-se a abertura de novas, nos cartórios competentes, com averbação saneadora da nulidade competencial anterior, sem novo dispêndio financeiro e sem necessidade de rogação. Por sorte −nome este que mal esconde a Providência divina−, não houve, nessas cerca de dez mil matrículas afligidas de nulidade, nenhuma alienação que impedisse o saneamento acolhido de maneira excepcional.
Alguém dirá −vae mihi− que nulidades absolutas não se saneiam. E eu não recuso que isso seja assim. Mas o fato é que se sanearam nesse caso, e ninguém reclamou. O tempo terá confirmado a solução de equidade.
Não é bem verdade que ninguém reclamou. Houve ao menos um registrador que reclamou de não ter recebido os emolumentos pagos a cartório incompetente. Indicou-se a ele a via jurisdicional.
Para concluir: em resumo, pode haver algum efeito retificador dos registros anteriores, suposta a adequação documental, na prática da versada reiteração do conteúdo de inscrições anteriores. E pode haver, mas isto de modo muito acanhado e em situações bem justificadas, um efeito saneador empolgado nessa reiteração conceitual.
