Sobre a determinação jurídica extrajudicial (parte 18)

           Des. Ricardo Dip

Comecemos agora uma breve apreciação acerca do cavere notarial.

           Define-se o cavere próprio dos tabeliães de notas o conhecimento e a disposição de medidas para prevenir, precaver e sanar lesões, danos, perigos e prejuízos contra seus clientes.

           Trata-se aí, pois, de uma atividade profissional −que convive com um cavere geral mais extenso do que o de uma profissão−, de caráter formalmente intelectual, embora, materialmente, destinado à realização de disposições morais (i.e., próprias da vontade ou dos apetites irascível e concupiscível).

           O cavere é previdencial e providencial; dirige-se ao conhecimento prévio de riscos e prejuízos possíveis, mas também a adotar medidas de providência preventiva e até de reparação (cf., a propósito, Juan Vallet de Goytisolo, Metodología de la determinación del derecho, Madrid, 1996, tomo II, p. 1.121).

           Acidente de qualidade, o cavere notarial pode ser disposição ou hábito, e, quanto a este, é suscetível de aquisição pela repetição de atos. Pode mesmo falar-se em educação do cavere notarial. 

           O conhecimento próprio do cavere visa à formação de um juízo reto, vale dizer, um juízo em que a inteligência apreenda as coisas como são em si próprias, como são na realidade (S.Tomás de Aquino, Summa theologiæ, II, 51, 3, ad1). Se a inteligência não apreende a realidade das coisas como se fora um espelho delas, aparecem somente “imagens torcidas e deformadas” −imagines distortæ et prave.

           Pois bem, de que hábito se trata quando se fala em cavere? Em geral, o cavere é um próprio da prudência, mas, especificamente, ele diz respeito a duas virtudes dela anexas e que podem dizer-se suas auxiliares: a sínese e a gnome.

           Consiste a sínese (em latim: synesis, mas a palavra vem do grego) no bom sentido moral ou sensatez, no juízo reto, formado não no âmbito especulativo, mas no das ações particulares; é a sínese o hábito de “julgar a verdade de tudo o que sucede conforme as regras comuns” (S.Tomás de Aquino, S.th., II-II, 51, 4, ad1). Pode estimar-se como a virtude do senso comum, o hábito diretivo das ações segundo o comum das coisas. A sínese distingue-se da prudência, porque pode dar-se um juízo reto sobre determinada ação particular que, no entanto, se protela ou se executa sem diligência ou de maneira desordenada; por isso, julgar bem o que ocorre ordinariamente é próprio da sínese, mas imperar e executar retamente, isto é próprio da prudência.

           Por sua vez, a gnome −também designada «perspicácia»− tem por objeto as coisas que sucedem raramente (quæ raro accidunt), apartando-se das regras comuns. É uma disposição ou um hábito que exigem agudeza na formação do juízo (quæ importat quandam perspicacitem iudicii).

           Feitas essas observações, passemos agora a considerar as vias de educação do cavere notarial.

           Como se deixou dito noutra parte, “os hábitos, por serem adquiridos, resultam da atividade das potências correspondentes: ‘(…) adquirimos as virtudes −diz Aristóteles− como resultado de atividades anteriores’. Aprende-se a caminhar, caminhando, e a correr, correndo, e a falar, falando; também se aprende ‘(…) a ser justo atuando com justiça’; a ser registrador, registrando; a ser notário, determinando-se, notarialmente, o direito, a res iusta, o que é devido a outro”.

           A sínese e a gnome podem adquirir-se de dois modos: pela solércia e pela docilidade.

           A solércia (do latim solertia, solertiæ) é a sagacidade ou solicitude, a experiência que leva a adquirir por invenção própria −per se inveniendo− o conhecimento do quanto é necessário para a boa ação singular.

           Por sua vez, a docilidade (do latim docilitas, docilitatis) é o meio de adquirir de outrem o conhecimento daquilo que é necessário para o bem agir em concreto. Também se disse noutra parte: “Os inúmeros modos e circunstâncias das ações particulares exigiriam muito tempo para que alguém as pudesse considerar por si próprio, dispensando a instrução de outros, nomeadamente dos que, ao largo da vida, já puderam formar adequado juízo sobre os fins das ações”.

           Marcel de Corte, em De la prudence, ensinou que “/il/ n’y a pas de prudence parfaite, adéquate à la réalité des moyens et de la fin, sans docilité” (Jarzé, 1974 p. 35).

           Prosseguiremos.