Há um ponto que, a meu ver, deve estimar-se fundamental para a consideração da gratuidade nas (ou das) funções extrajudiciais, tal como, de consonância com o usus loquendi −é dizer, em sua perspectiva histórica−, ficaram essas funções conceitualmente restringidas para os fins de desenvolver-se este pequeno estudo. Esse ponto fundamental é o do conceito de «delegação», termo adotado no texto do caput do art. 236 da vigente Constituição nacional: "Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público".
O conceito geral de «delegação» − qual seja o da faculdade de uma pessoa ou órgão (delegante) atribuir o exercício de seus poderes a diversa pessoa ou diferente órgão (delegado ou delegatário)− já não exige, no campo do direito público (que é o ambiente de relevo para estas nossas considerações), a nota de hierarquia que era comum, outrora, no figurino da doutrina clássica: por muitos, confira-se Guido Zanobini, referindo-se ao decentramento gerarchico e ao decentramento autarchico (in Corso di diritto amministrativo, ed. Giuffrè, 6.ed., Milão, 1958, tomo III, p. 74), hierarquia com que a delegação −na esfera do direito administrativo− apenas se admitiria como uma atribuição intrassubjetiva de poderes de um subalternante a um subordinado. Passou a reconhecer-se, no entanto, a delegação de poderes públicos não somente entre sujeitos não hierarquizados entre si (veja-se, brevitatis causa, Paulo Otero, ancorado em muitas indicações doutrinais: Conceito e fundamento da hierarquia administrativa, ed. Coimbra, Coimbra, 1992, p. 142 et sqq.), mas também a delegação de poderes em pessoas de direito privado (vidē, p.ex., Pedro Gonçalves, Entidades privadas com poderes públicos, ed. Almedina, Coimbra, 2005, p. 680 et sqq.).
Esta divisão de situações no plexo do direito público −delegação intrassubjetiva (é dizer, com a presença do liame da hierarquia) e delegação intersubjetiva, inclusa sua especialidade de delegação de poderes num ente privado (em que se reconhecerá apenas uma para-hierarquia de caráter fiscalizador e sancionador)− torna problemática a elaboração de um estatuto comum de regência desses vários tipos de delegação. Isto não somente diz respeito à questão da concorrência competencial, que sobrevive na delegação intrassubjetiva −e talvez só e raramente seja possível na intersubjetiva−, senão que fundamental de todo é considerar a natureza jurídica dos vínculos correspondentes (peço aqui licença para uma indicação autorreferencial, a que me lanço por brevidade de causa: trata-se do que escrevi, amparado na autoridade de alguns bons administrativistas, em Direito administrativo registral, ed. Saraiva e Irib, São Paulo, 2010, p. 72 et sqq.).
Tratando-se agora, de maneira particular, da delegação das atividades extrajudiciais prevista no art. 236 da Constituição federal brasileira, duas coisas parecem exigir alguma consideração inicial. A primeira delas é a do que se poderia designar «ficção operacional conveniente» adotada por nosso Código político. A segunda, já acima referida, diz respeito à natureza jurídica dessa delegação especializada para o extrajudicial, ou, talvez mais pontualmente, concerne à sindicância quanto a essa delegação ter por fonte um ato administrativo ou, em vez disso, um contrato público, um contrato administrativo.
Quanto ao primeiro tema, a ideia de delegação das atividades notariais e registrais −assim indicada no texto do caput do art. 236 da Constituição nacional de 1988− consiste, por manifesto, numa ficção, porque a realidade histórica, quanto ao notariado latino, é a de que a potestade política apenas atribuiu aos sujeitos ativos das notas, já atuantes há séculos por exigência espontânea das comunidades, o poder da dação da fé pública, de tal maneira que se pode afirmar que o notário −e isto pode estender-se ao registrador público, que descende historicamente do notariado− é mais um órgão da sociedade do que do estado, ou seja, o notário, na expressão de Vallet, exerce "una función social, pero no estatal" (in Metodología de la determinación del derecho, ed. Centro de Estudios Ramón Areces e Consejo General de Notariado, Madri, 1996, tomo II, p. 1.096), ou, como o afirmou Sanahuja Soler: "el notario no es un órgano del Estado sino de la comunidad jurídica, que funciona sin intervención del Estado"; e não diversamente González Palomino −"El notario es una creación social, no es una creación de las normas"−, Antonio Rodríguez Adrados –o notário "es un profesional del derecho que ejerce una función privada"− e García de Enterría: "la denominada función pública del notario (…) no es, propiamente, una función que corresponda al Estado y que éste delegue a determinados profesionales sino que, más bien, es una actividad profesional con trascendencia pública de modo que quien la ejercita, por razón de ejecutarla legalmente, asume ipso iure una función pública, sin que sea posible hablar de un fenómeno de trasferencia, concesión o delegación de funciones" (apud Vallet, o.c., p. 1.096-1.097). Assim rematou o mesmo Juan Vallet, o notário exerce uma função pública, "no en el sentido de ser la suya una función de derecho público sino de interés público" (p. 1.094).
Abra-se um parêntese para observar que de duas, uma: ou bem se admite uma natureza histórica para configurar-se o notariado latino, ou se terá de reconhecer que caiba ao estado moldar como entenda esse notariado (por mais que símile livre aventura positivista só faria rematar na negação da latinidade notarial). Em resumo, ou bem ficamos com a história que deu e dá fisionomia perseverante ao notariado latino, ou ficamos com o mero talante do poder político de turno (este é o quarto de hora que amarrota os positivistas).
Prosseguiremos.