Des. Ricardo Dip
A primeira das questões que, no plano do direito positivo, deve considerar-se quanto às leis, é a de sua validade competencial.
É dizer: a lei proveio de autoridade que detinha competência constitucional para editá-la?
As constituições políticas são um lugar jurídico propício para a repartição de competências legislativas. Observá-las é condição de validade das leis.
Um problema frequente, nesse campo, ocorre nos estados compostos (estados federais), quando se estabelece uma dada interseção competencial, que se tem designado «condomínio de competências».
Recentemente, deu-se o caso de uma demanda direta de inconstitucionalidade de uma lei paulista, de n. 17.649, de 7 de março de 2023, lei essa que impõe aos cartórios de registro civil das pessoas naturais do Estado de São Paulo a emissão, mediante escrita em braile, de certidões de óbito, nascimento e casamento.
A requerente dessa demanda alegou que a normativa impugnada atrita, no plano formal, com a competência privativa da União para legislar sobre registros públicos (inc. XXV do art. 22 da Constituição nacional de 1988), afrontando, assim, o disposto nos arts. 1º e 19 da Constituição do Estado de São Paulo. Entendeu ainda que, no aspecto material, a lei alvejada ofende a norma do art. 111 da mesma Constituição paulista, por frustração dos princípios da razoabilidade, da finalidade e da eficiência.
Em contrário, a Procuradoria Geral do Estado argumentou competir aos estados, de modo concorrente e suplementar, a edição de leis de "proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência" (inc. XIV do art. 24 da Constituição federal), além de afeiçoada a lei objeto ao que dispõe, no âmbito federal, a Lei 13.146, de 6 de julho de 2015.
Tem-se aqui, em palavras de Canotilho, um «caso de tensão», porque se enfrentam competências legislativas, exigindo encontrar o que o mesmo Canotilho designou como «norma de decisão situativa» −ou seja, moldada às circunstâncias do caso (cf. Direito constitucional e teoria da constituição, ed. Almedina, Coimbra, 1998, p. 1.109).
O diagnóstico do enfrentamento de competências legislativas, no quadro em exame, põe, de um lado, a previsão de que os estados membros possam, de consonância com a ordem constitucional que vigora entre nós, legislar tanto de maneira concorrente (inc. XIV do art. 24 da Constituição federal), quanto de modo suplementar (§ 2º do mesmo art. 24), em matéria de "proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência".
De outro lado, põe-se a indicação da competência privativa da União para legislar sobre "registros públicos" (inc. XXV do art. 22 da Constituição nacional).
Saliente-se que a lei objeto −relativa à publicidade formal registrária− integra, assim, o segmento do direito dos registros públicos, a tanto bastando ver que a expedição de certidões, núcleo da lei adversada, vem referida ao largo de toda a vigente norma geral dos registros públicos (Lei 6.015, de 31-12-1973: v.g., arts. 14, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 30, 32, 47, etc.; no mesmo sentido, em doutrina, a título ilustrativo: Serpa Lopes, Tratado dos registos públicos, ed. Freitas Bastos, 4.ed., Rio de Janeiro -São Paulo, 1960, vol. I, p. 19 et sqq.; Carlos Ferreira de Almeida, Publicidade e teoria dos registros, ed. Almedina, 2.ed., São Paulo, 2022, p. 99 et sqq.).
Não custa dizer que a classificação das certidões do registro como documentos secundários resulta de considerar-se sua posterioridade lógica e cronológica em relação aos documentos principais (assentos no registro civil das pessoas físicas, matrículas no ofício imobiliário e no registro civil das pessoas jurídicas, transcrições no registro de títulos e documentos). Mas as certidões não são documentos de relevância jurídica secundária, tanto que −mediante a fides attestationis que lhes é própria− têm o mesmo valor jurídico dos originais (cf. art. 217 do Código civil brasileiro: "Terão a mesma força probante os traslados e as certidões, extraídos por tabelião ou oficial de registro, de instrumentos ou documentos lançados em suas notas").
Vê-se na situação em pauta um conflito que envolve o tratamento relativo a um direito fundamental −mais exatamente, um direito fundamental particular, cujo núcleo é a dignidade da pessoa portadora de deficiência (cf. Jorge Miranda, Manual de direito constitucional, ed. Coimbra, 2.ed., Coimbra, 1998, tomo IV, p. 80) e, de modo contraposto, um fim de interesse geral (o registro público).
Não há hierarquia formal −no âmbito das regras− em nossa Constituição, entre essas duas competências legislativas, e o fato do exercício de uma delas beneficiar um direito fundamental não acarreta, por si só, sua superioridade sobre outra que se exercite em favor do interesse geral da sociedade. Com efeito, os direitos fundamentais −sequer o mais elevado deles, que é o direito à vida− não são ilimitados, podendo subalternar-se, em dadas circunstâncias, ao interesse comunal. Por outro lado, já o critério principiológico da prevalência do interesse aparentaria, prima facie, sinalizar, no caso, o benefício da preferência competencial da União, à míngua de avistar-se alguma peculiaridade regional que pudesse justificar o primado da competência legislativa do Estado de São Paulo.
Mais ainda: tenha-se em conta que o objetivo de encontrar uma norma afeiçoada às circunstâncias não deve, contudo, reduzir-se ao caso concreto, como se não houvesse um critério ou princípio geral para nortear a solução, admitindo-se, então, apenas um casuísmo autorreferencial.
É possível, parece, buscar um critério geral para a dirimição do enfrentamento das normas.
Empresta-se aqui ainda uma vez uma referência de Canotilho, que fala na «topografia dos conflitos».
Que temos, a propósito? Uma lei estadual que, visando à proteção de pessoas com deficiência, emana regra que, primeira e diretamente, incide no registro público −para cuja disciplina há reserva privativa de competência da União.
Consideremos agora −observada rigorosamente o mesmo parâmetro da situação topográfica do conflito em exame− uma outra lei estadual (hipotética, decerto), que também tenha por fim a proteção de pessoas com deficiência, expedindo norma que, primeira e diretamente, atue no campo do processo civil ou do processo penal, cujas leis são de competência privativa da União (inc. I do art. 22 da Constituição federal). Cogitemos, à luz dessa hipótese, de um exemplo concretizador −que é propositadamente caricatural, para melhor pôr à mostra o problema: uma lei estadual, dirigida a proteger pessoas com deficiência de visão, emissora de regra que, nos processos de que elas participem, imponha seja feito o julgamento dos recursos na sala de estar da residência dessas pessoas. Ou ainda: uma lei estadual que, com a mesma intenção protetiva, reduza, quanto às compras efetuadas pelos deficientes visuais, as alíquotas do imposto relativo à importação de produtos estrangeiros (matéria que é da competência legislativa da União: inc. I do art. 153 da Constituição federal).
É fácil a indução de que, com a só prevalência das finalidades benignas (do legislador e da lei −mentes legislatoris legisque) de proteger direitos de pessoas portadoras de deficiência, já não haveria limite algum para conter a competência constitucional da edição de leis pelos estados membros.
Preservou-se nos exemplos acima a particular situação da «topografia do conflito» apreciado neste caso: leis estaduais que, com o objetivo da consecução de um fim que quadra com a competência constitucional legislativa dos estados, atinge esse fim, entretanto, por meios, primeira e diretamente, intrusivos da esfera alheia da competência legiferante dos mesmos estados. Não se imunizam, porém, as competências legislativas concorrente ou de suplementação da observância dos espaços de reserva legiferante.
Admitida a tese da validade da lei em exame, evidencia-se o inconveniente: os estados membros −tanto buscassem um fim protetivo de pessoas com deficiência− poderiam (sem lei autorizadora de caráter complementar: par. único do art. 22 da Constituição federal) editar normas de direito civil, de direito penal, de direito do trabalho, de direito eleitoral, ou regras de processo civil e de processo penal, et reliqua.
A clivagem, portanto, para a solução do conflito competencial, no caso, não pode estar nas finalidades, porque isso implicaria a legitimação das extravasões de competência. O corte deve pôr-se no que primeiro e diretamente se atua na esfera dessa competência.
Em outras palavras, para beneficiar um fim jurídico não se admite adotarem-se, primeira e diretamente, meios injurídicos. Ou seja, o fim não justifica os meios. Diversamente, estaríamos diante de uma espécie de «maquiavelismo legístico».
Isso foi o que entendeu o Tribunal de Justiça de São Paulo, julgando inválida a lei.
Mas, para ver-se a aguda controvérsia e a falta de consenso na questão, tenha-se em conta que o julgado paulista foi reformado em decisão monocrática proferida no eg. STF.
Prosseguiremos.