Des. Ricardo Dip
No direito romano arcaico(período que finda em 130 a.C.) e no direito romano clássico (130 a.C. a cerca de 230 d.C.), era costumeiro que a determinação do quod iustum est se realizasse por meio do agere, do respondere e do cavere (entre outros modos), e todos esses modos persistiram ao largo da Idade média, avultando, a propósito, já a partir do século VIII, a atuação dos notários.
Surgida na França carolíngia, adotou-se, entre os séculos X e XII, na Itália, no sul da França e nas Espanhas (em Portugal inclusive), a escritura românica, obra dos notários com titulação real (notarii regales), eclesial (notarii Ecclesiæ) ou da nobreza (notarii comitis; cf. José Bono, Historia del derecho notarial español, Madrid, ed. Junta de Decanos de los Colegios Notariales de España, 1982, tomo I-1, p. 121 et sqq.; Vallet de Goytisolo, Metodología de la determinación del derecho, Madrid, ed. Centro de Estudios Ramón Areces, 1994, tomo I, p. 162).
Esse período −é dizer entre os séculos X e XII− é o em que, com os glosadores e canonistas, atuam os notários como simples redatores de documentos, mas, em seguida, participam eles da consumação do trânsito da arte de redigir (ars dictandi) à arte propriamente notarial (ars notariæ). Em palavras de Vallet, deu-se “el paso del scriptor, o simple redactor de documentos, al notarius publicus” (o.c., p. 163).
Atuando o ius respondendi e o cavere, o notário da Baixa medieval teve de desenvolver sua capacidade de descoberta (inventio), ou, em outros termos, teve de experienciar sua função de conselho, tendo como resultado a confiança social, formando-se assim um vínculo entre o notariado e a comunidade (cf. André Gouron, apud Vallet, p. 251).
Assinale-se que isso não aconteceu num plano abstrato, mas na tarefa de determinação da res iusta, porque os notários estavam chamados a dar solução a casos nascidos das novas necessidades sociais, que muito resultavam da exigência de integrar os vários direitos peculiares (territoriais, estatutários, corporativos) com o direito romano (ius commune do Império) e o canônico.
É, então, ainda aqui seguindo as lições de Vallet, que −em datas variadas (variedade explicada quer pelas épocas diversas da ocupação romana, quer pela diferença dos substratos culturais)− se tramita da ars dictandi, a arte de redigir, para a ars notariæ (arte notarial).
Aquela era uma síntese das artes do trivium −com a técnica de redação (dictare) e a observância das regras gramaticais, lógicas e de estilo (dictamen) −, tais como já ensinadas e aprendidas desde as escolas monacais de, depois, nas urbanas, servindo a ars dictandi à redação de cartas (epistolæ) e documentos públicos (privilegia) e privados (instrumenta).
A ars notariæ −arte exclusiva dos notários− tem seu começo com Raniero da Perugia (c. 1185– c. 1255), ainda que não faltem antecedentes obras seminais. Professor na Universidade de Bolonha −magister artis notariæ−, publicou, na primeira metade do século XIII, sua Ars notariæ, denominação também adotada por Salatiel (1210-1280), ele também artis notariæ professor e doctor notariæ. Por fim, tem-se a obra do mais clássico dos notários, Rolandino Passegeri (1207-1301), de que é sobretudo assinalável sua obra Apparatus super Summa notariæ (conhecida pelo nome de Aurora, e, completada por Pedro de Unzola, também pela denominação Meridiana).
Tinha-se agora uma nova scientia, que incluía, além da escrituração (objeto próprio da ars dictandi), a formulação do negócio jurídico. Eram já os primórdios da scientia artis notariæ, a ciência que reunia as destrezas próprias do notário e suas obras, artes essas que, como visto, tiveram origem com a passagem histórica da ars dictandi (a arte de redigir os dicta) para uma etapa superior de desenvolvimento das funções do notário, etapa essa que consolidou, por meio da agregação da auctoritas (saber socialmente conhecido) com a potestade da fides publica, o tipo geral do notariado latino.
A ars notarii ou ars notariæ (suposto que sejam expressões sinônimas) é tanto a própria da destreza do notário, quanto à ligada ao opus produzido (factio) ou documento segundo a destreza notarial. Estava aí o resultado do respondere e do cavere, com a elaboração literária de um conjunto de fórmulas para servir de modelo na atuação notarial.
A nova scientia notariæ é ainda a que, em nossos tempos, caracteriza o perseverante notariado latino; assim o disse José Bono: “O scriptor e a carta da alta e central Idade Média são algo muito distinto do notarius publicus e do instrumentum publicum que desde o século XII perduram até hoje, como também o foram o tabellio e o instrumentum romanos da tardia Antiguidade” (o.c., p. 20-21).
Prosseguiremos.
