Des. Ricardo Dip
[Dedico estes pequenos “borrões de meus papelinhos” (são palavras do Padre António Vieira) ao eminente Desembargador Fábio Haick Dalla Vecchia, do egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, estimado amigo e irmão que me animou a escrever sobre o cavere notarial].
Sigamos na consideração do cavere próprio da função notarial, e, antes de passarmos às espécies ínfimas dessa conduta previdencial e providencial que caracteriza o cavere dos tabeliães, voltemos um tanto no caminho já andado, isto com o objetivo de aprofundar um pouco alguns poucos assuntos.
Já vimos que as disposições e, sobretudo, os hábitos mais próprios do cavere notarial são a sínese e a gnome. Falamos em «disposições e hábitos», que são pares de um binômio de especificação da categoria «qualidade». A qualidade é um predicamento (ou categoria), em rigor, indefinível (porque não tem gênero), mas que se compreende como algo, um acidente, que completa e aperfeiçoa uma substância, à qual comunica algo novo. Essa categoria, a da qualidade, divide-se em quatro espécies pareadas: (i) potência e impotência; (ii) qualidade passível e paixão; (iii) figura e forma; (iv) hábito e disposição. Esse último binômio consiste em uma qualificação determinativa de um estado de um ente ou de algo que lhe facilite uma operação; quando se trate de uma qualidade permanente, diz-se «hábito» (que pode ser bom, e então chama-se virtude; ou pode ser mau, e nomeia-se «vício»); cuidando-se de uma qualidade instável, tem-se a «disposição». [Para quem almeje uma primeira leitura autorizada sobre este assunto, recomendo, brevitatis studio, o muito seguro Thiago Sinibaldi, Elementos de filosofia).
Pois bem, tenhamos em importante conta a relação da verdade com essa disposição ou esse hábito da sínese que integra o cavere notarial.
É interessante considerar que há duas perspectivas da verdade que têm seu papel na sínese e na gnome. De um lado, a verdade lógica −qual seja, a adequação do intelecto à realidade cognoscível, à coisa que se conhece; de outro lado, além disso, cabe exigir que a coisa produzida pelo tabelião esteja conformada a sua conclusão intelectual; trata-se aí da verdade ontológica, é dizer, da adequação da coisa (enquanto produto de uma arte) à inteligência que a produz. Vejamos isso num exemplo escolar: o tabelião deve adequar sua inteligência à realidade dos fatos, incluída a vontade dos clientes; deve inventar (do latim invenio, com o significado de achar, descobrir, e não de criar), mas, além dessa leal atitude de adequar-se à realidade (quer dizer, à verdade lógica), tem ainda o notário de exprimir seu juízo (ato interno) em um produto que, sendo sua expressão assinaladora e comunicativa, deve exteriorizar a verdade ontológica, ou seja, a adequação do que se produz à mente do produtor.
Um segundo ponto que me parece bem deva aqui realçar-se diz respeito à sínese. Já o vimos, a sínese, que é uma das partes potenciais ou virtudes anexas ao hábito da prudência, consiste em um juízo reto para as condutas particulares; é a virtude, ensinou S.Tomás de Aquino, de “julgar a verdade de tudo o que sucede conforme as regras comuns”.
Seria certamente interessante meditar sobre a relação entre a sínese e a sindérese (hábito intelectual dos primeiros princípios da razão prática), mas não é esta a oportunidade adequada. Baste-nos aqui a referência ao fato de que a sínese, apreendendo as regras comuns, corresponde a uma espécie de «inteligência natural», ou, em expressões menos próprias, «razão espontânea», «instinto intelectual», a que pode atribuir-se a denominação de «senso comum» (inconfundível com o «sentido comum», uma das potências sensitivas internas humanas). E como o «senso comum» se diz comum por ser algo universal que, em linha de princípio, é presente, uniforme e constante em todos os homens, calham bem, sobre a formação do juízo desse «instinto intelectual» que leva a uma «filosofia rudimentar do ser» (Garrigou-Lagrange, em Le sens commun), estas palavras de Tzevan Todorov (in A literatura em perigo): “Pensar colocando-se no lugar de todo e qualquer ser humano”.
Pode, pois, falar-se, acerca do senso comum, na «metafísica natural da inteligência humana». Todavia, há um problema a apontar, e está em que, nada obstante com essa «razão espontânea» cheguemos, comumente, a conhecimentos primordiais e fundamentais, há períodos em que isso pode não só debilitar-se, mas até mesmo desconstruir-se. Com efeito, testemunha-o fartamente a história, pode ocorrer, tanto individual, quanto socialmente, que a lei natural se entorpeça pela exuberância dos pecados humanos −propter exuberantiam peccatorum (S.Tomás), e, com isso, fragilize-se ou quase se suprima a atuação da sindérese e da sínese na qualificação da inteligência.
Isso não é um fenômeno de todo raro na biografia da humanidade: já La Fontaine apontara uma dada tirania do espírito de cada século: “ne pas louver son siècle est parler à des sourds”; também Romano Amerio denunciou, no Iota unum, o que denominou circiterismo storico, consistente na “generale cupidità di secondare lo spirito del secolo”. Impiedosamente, escreveu Nicolás Gómez Dávila que “/p/ensar como nuestros contemporáneos es la receta de la prosperidad y de la estupidez” (in Escolios a un texto implícito).
A acolher a opinião de Julio Meinvielle, vivemos ainda agora, e faz décadas, tempos, em que o senso comum está “completamente destruído pelas perversões ideológicas quase inverossímeis”. E, de fato, a admitir o que dizem alguns autores, tem-se que a sínese se vê assediada pelo politically correct, por lugares comuns, slogans e tópicos ideológicos que fazem vacilar, desencorajar ou mesmo inibir larga parte dos juízos de senso comum. Lembra-me aqui uma referência de Dostoiévski, em seu melhor escrito −Os demônios−, apontando que alguns têm “vergonha da própria opinião”.
Isso também molesta a atividade dos tabeliães. Quem já não ouviu alguns de nossos melhores notários expressarem «de boca» uma dada confiança em práticas disruptivas, porque estas vêm proclamadas por incessantes invectivas ideológicas, quando, in mente, esses tabeliães prognosticam muito bem a tragédia institucional a que elas levarão?
Prosseguiremos.
