Des. Ricardo Dip
Continuemos a considerar o cavere notarial, percorrendo agora algumas de suas espécies ínfimas, ou, em outras palavras, algumas das condutas que devem alimentar-se dos predicados do cavere.
Parte das considerações que seguem pode situar-se mais no âmbito do respondere notarial, mas, para nosso propósito principal −o da determinação jurídica−, o discrimen entre o respondere e o cavere não tem, neste nosso passo, maior importância. Veremos em conjunto, pois, ambas essas qualificações.
Comecemos por uma referência, que é de todo conveniente e oportuna, ao status profissional do notário latino, invocando aqui, brevitatis studio, indicações feitas por António Rodríguez Adrados, em estudo publicado em mais de uma revista (consulto a edição da Revista de Derecho Notarial Mexicano n. 80, de 1981). Diz Rodríguez Adrados que o tabelião de notas é “un profesional del derecho que ejerce una función privada”, função, entretanto, que ingressa na mesma função pública e modula “la misma función pública, de manera que una y otra resultan inescindibles”. Daí que haja de funcionariedade pública no estado jurídico profissional do notário, qualificação, contudo, que não acarreta seja o tabelião um funcionário estatal. Veja-se, a propósito, esta passagem de nosso autor: “el notario no es, desde luego, ni de hecho ni de derecho un funcionario de la administración civil del Estado”.
Fosse a atividade do notário reduzida à «aplicação da lei» −ou seja, considerada sua tarefa (e disto parece que disso se persuadem alguns, ou, ao menos, a isso se resignam), então o respondere e o cavere dos tabeliães convertiam-se, em rigor, num simples ministrare. De maneira semelhante, o juiz, conformado em ser «la bouche de la loi», tornaria o iudicare um mero ato de administração. Não é outra coisa do que esse desvio a hoje muito ouvida referência à «administração da justiça», lugar comum propício aos esquematismos, formularismos e facilitismos das atuações judiciais. Tampouco é muito diverso o impróprio uso do termo complexo «operador do direito« em substituição ao termo «jurista».
Mas, prossigamos.
O tabelião de notas tem por objeto imediato de sua atuação os interesses privados de seus clientes (ou outorgantes), e é só de maneira mediata que, como um consequente do atendimento desses interesses privados, é que satisfará o interesse público. Rodríguez Adrados, assim o resume Vallet de Goytisolo, observou que, para cumprir o objetivo de atuar em prol dos interesses privados de seus clientes, o notário deve buscar que esses interessem se realizem “en armonia, seguridad, libertad, justicia y reducción del índice de litigiosidad”.
Exatamente porque se trata de uma atuação diretamente voltada a atender a interesse privados, o notário não age propter officium, mas à instância dos particulares interessados, respeitando ainda a faculdade de esses particulares desistirem da rogação inicial.
Todavia, instada a intervenção do notário, ele não é um amanuense escrevinhador da vontade dos clientes, senão que, respeitante embora dessa vontade, decidirá livremente sobre o modo específico de sua atuação profissional (e, no limite, até mesmo se pode atuar).
Daí que, como fez ver Juan Vallet de Goytisolo, em passagem antológica −ainda comentando as lições de Rodríguez Adrados− , “el notario no se halla super partes, como lo están em mayor o menor medida los funcionarios, sino extra partes, y ni siquiera tiene la modica coercio que se reconocía a los notarios en la jurisdicción voluntaria. Su oficialía pública es solo quod officium −como dice Giacobbe− y de ninguna manera quod potestatem” (in Metodología de la determinación del derecho, Madrid, 1996, tomo II, p. 1.098).
Por isso, o tabelião de notas não detém imperium. Em termos prático-práticos: se a lei não lhe permite autorizar um documento ou expedir uma certidão, deve negar-se a fazê-lo, sem a potestade de suplantar o óbice. São palavras de Vallet: o notário “/e/s un funcionario cuya única posible potestad sobre la voluntad de los requirentes es ‘la de no funcionar’”.
Em troca, prossegue Vallet, o tabelião é livre na maneira de exercer seu ofício, somente se sujeitando às regras da técnica de sua função e às disposições da lei. Disso resulta que seja pessoalmente responsável por lesões morais e danos patrimoniais que cause. Ao revés do que se passou a entender no Brasil, ao notário −é lição de Rodríguez Adrados e de Vallet− “no se le aplica el principio fundamental del derecho público moderno, que hace al Estado responsable directo y solidario de los daños y perjuicios causados por sus funcionarios”.
Profissional do direito, o notário celebra, de maneira tácita, um contrato com o cliente, e tem, por isso, como ato de justiça, o direito de receber remuneração (digna, justa), ainda que esta se sujeite a um esquema legal.
Detendo clientela particular e em âmbito de demarcação geográfica, concorrendo livremente com outros tabeliães, o notário não deve incorrer em concurso desleal.
Os notários, enfim, hão de organizar-se em corporações ou colégios, e não em sindicatos.
Pronto. Disto isso tudo, já será mais fácil apreciar as espécies ínfimas do respondere e do cavere notariais.
