Sobre a determinação jurídica extrajudicial (parte 6)

           Des. Ricardo Dip

A compreensão da lei −«parte» do processo discursivo (que alguns designam «operatório») da determinação jurídica, quer judicial, quer extrajudicial− divide-se, como ficou visto e segundo a consagrada lição de Juan Vallet, em compreensão do texto (compreensão do dictum) e compreensão da norma (compreensão do actum).

           Há poucos dias, num tribunal brasileiro, segundo noticiou a imprensa, estabeleceu-se um interessante debate acerca dos limites da «interpretação» constitucional (reitero aqui a ressalva de que pareceria melhor falar em «compreensão» constitucional, evitando o reducionismo positivista). Conforme o noticiário, um dos magistrados, então, teria dito que a Constituição e a Bíblia comportam sempre uma livre interpretação, ao passo que outro magistrado retorquiu, emendando, que as livres interpretações da Bíblia levaram a heresias. (Coisa digna de observar é que essa última referência, apontando o risco do livre exame da Bíblia, emergiu de um juiz de credo protestante. Mas prossigamos).

           Essa liberdade relativa ou absoluta de «interpretação» (rectius, de compreensão) é um assunto espinhoso. Teríamos de perguntar-nos se há e qual o limite de uma compreensão («interpretação»). Se essa liberdade não estiver sujeita a um limite, não há mais verdade. Se, em vez disso, podemos impugnar de errônea alguma intentio lectoris, é porque a demarcamos: se toda compreensão, de fato, por dizer-se absoluta, estivesse imunizada de pecados, a nenhuma se poderia destinar crítica razoável.

           Não se trata, deixemos dito, de admitir uma limitação epistêmica para a «interpretação», ou seja, admitir obstáculos arbitrários à investigação, à pesquisa, ao inquérito, à memória, à experiência, à seleção de conceitos relacionáveis, à meditação. É na liberdade epistemológica de pensar que se consagra a humana autonomia do pensador.

           Mas não parece razoável, por fim, negar que haja limites à «interpretação». Esses limites são exatamente os da significação dos textos a contar da realidade de seus objetos de conceito. Enfim, é o contraste com a realidade o que enerva a crítica à intentio lectoris.

           Na esteira de Yvan Élissalde, se nos propomos criticar razoavelmente uma dada «interpretação», é forçoso que de algum modo a definamos. Não é possível, com efeito, criticar algo cuja noção por inteiro nos escape. Mas definir é «pôr fins», é aceitar limites, é limitar a compreensão de conceitos e extrair-lhes a extensão correspondente.

           Se admitíssemos a ilimitação do intérprete, atrairíamos a infinitude conceitual da «interpretação» −em vez de sua de-finitude−, e recusaríamos, a priori, toda possível «interpretação da interpretação». Aceitar os limites da significação objetiva, apoiada na evidência como critério metafísico derradeiro−, é salvar o pensamento e salvar o intérprete.

           Prosseguiremos, tratando da compreensão dos fatos, como quase-parte do processo de determinação jurídica.