Des. Ricardo Dip
Depois de termos apreciado, ainda que de maneira concisa, a compreensão da lei −ou seja, a compreensão do texto e a compreensão da norma−, trataremos agora, novamente com brevidade, da compreensão dos fatos, segunda quase-parte do processo discursivo da determinação jurídica.
A adequada «compreensão dos fatos» equivale à percepção da realidade de uma coisa, vale dizer, corresponde (i) à representação mental de um fato exterior e (ii) à confirmação de que esse fato se efetivou tal como pôde ser percebido e representado pelo sujeito cognoscente.
Essa representação mental −i.e., a percepção da realidade objetiva de dada coisa− abrange não apenas a consideração da coisa em si própria, senão que também suas causas, seus efeitos, suas circunstâncias, e até mesmo seu confronto com coisas tanto símiles, quanto opostas (esta é uma lição que já se encontra em Giambattista Vico; cf., a propósito, Juan Vallet, Metodología jurídica, p. 400).
Vejamos, a título ilustrativo, o que muitas vezes se passa no plano judicial, acontecimento paralelo ao que ocorre, mutatis mutandis, no extrajudicial.
Em meados do século XX, José Castán Tobeñas queixara-se, quanto à atuação dos juízes do jurisdicional, de não atenderem eles à diagnosis del hecho. Parece que esse reclamo pode repetir-se em nossos dias. No plano da magistratura judicial tornou-se tópico um chiste −um tópico que, na verdade, se converteu piedosamente em um chiste (eu próprio ouvi, em solenidade pública num tribunal, a afirmação de que os juízes deveriam decidir com rapidez, sem importar-se com a melhor ou pior determinação do direito, porque os tribunais corrigiriam eventuais erros)−, mas dizíamos: o “chiste” que se fez tópico diz com estas ou parelhas palavras: “decida qualquer coisa; o tribunal retifica”. Não sei bem que dizer, se isso é um louvor à precipitação ou um elogio à indiferença com a sorte alheia.
Lembremo-nos aqui (e isto o cito de memória) de uma lição de Enrico Redenti, em que este grande processualista italiano testemunhou sua constante experiência de que, nos processos, uma suficiente aproximação da verdade resulta, com frequência, de uma atividade judicial progressiva. Sem uma primeira instância consciente da provada relevância de sua atuação no processo, a segunda instância suportará grave carência para progredir no acercamento da verdade.
Em nossos dias, com os recursos informáticos, o problema parece agravar-se.
Em célebre livro sobre o julgamento de Adolf Eichmann pelo Tribunal de Jerusalém, a conhecida pensadora Hanna Arendt opinou que Eichmann foi corrompido pela modéstia. Interessante de todo esse aceno à corrupção pela modéstia, ou, em outros termos, pelo adesismo não crítico a opiniões dominantes e a soluções superiores ou acaso consensuais, com que –observou Arendt– pensa-se haver dispensa de ter ideias próprias.
Há mesmo quem nisto aviste −impiedade à parte− um simples arrivismo judicial, convertidas as instâncias iniciais em meros sítios repetidores de decisões dos tribunais, abdicadas do ânimo de diagnosticar fatos e de buscar o direito em cada caso concreto.
Assim, as instâncias judiciais não derradeiras, por meio do facilitismo das repetições de precedentes, correm o grave perigo de se reduzirem ao papel de diáconos (em rigor, despiciendos) de um mero rito de passagem.
Prosseguiremos.