Des. Ricardo Dip
Reiteremos: compreensão da lei (dividida em duas “partes”: compreensão do texto e compreensão da norma), compreensão dos fatos, interpretação e aplicação do direito. Essas são as quase-partes do processo de determinação jurídica.
Na exposição imediatamente anterior, começamos a apreciar a «compreensão dos fatos» −ou seja, a percepção da realidade de uma coisa−, correspondendo (i) à representação intelectual de um fato exterior e (ii) à confirmação de que esse fato se produziu (mais exatamente: atualizou-se) do modo como pôde ser percebido e representado pelo sujeito cognoscente.
Abdicamos −projetando o assunto para mais tarde− uma referência mais detida à «representação intelectual»−, e indicamos, valendo-nos do paralelo com a determinação jurídica judicial, o problema, apontado por José Castán Tobeñas, do menosprezo da diagnosis del hecho. Equivale a dizer, a uma tendência a soluções apriorísticas e abstratas (respostas prêt à porter), fruto frequente, no plano doutrinal, de inclinações idealistas ou formalistas, e, no aspecto prático-prático, da acomodação ao menor dispêndio de esforços (não nos esqueçamos de que, herdeiros do pecado original, inclinamo-nos todos à acídia, quanto às coisas espirituais, e à preguiça, quanto às materiais; para quem deseje aprender mais e meditar sobre essa herança, parece-me bem recomendar a leitura de Garrigou-Lagrange, As três idades da vida interior, edição brasileira de 2018: São Paulo, Cultor de Livros).
Para avançar no assunto da representação intelectual na determinação jurídica, valhamo-nos aqui de uma autorizada obra de Daniel Serpentino, Segurança jurídica e determinação do direito (São Paulo, Lepanto, 2024). Serpentino é um magistrado paulista, com estudos na Itália, e esse seu referido livro já foi objeto de favorável recente apreciação crítica na Espanha.
Pois bem, embora nosso autor trate, neste passo, do assunto de maneira mais abrangente (abarcando a compreensão da lei), podemos aplicar sua visão ao campo mais estreito da compreensão dos fatos. Assim é que, abstraindo possíveis subdivisões e matizes, Daniel Serpentino classifica em formalistas e realistas as tendências da representação intelectual de coisas no processo discursivo da determinação jurídica. Conceitua, a seguir, as linhas formalistas, por as que “concebem a atividade interpretativa como voltada a descobrir dedutivamente o único significado verdadeiro ou próprio de uma disposição normativa, e/ou a determinar a verdadeira e unívoca vontade, ou intenção, do legislador” (p. 349). Adiante, versa o autor largamente acerca dos realismos que, a um deles, nomeia pragmatista/empirista −que reconhece em escolas iuspositivistas−, o segundo: o construtivismo interpretativo, e, por fim, o da tradição clássica iusnaturalista, com que se compreende o “fenômeno moral e jurídico segundo o fundamento objetivo imposto pela essência/natureza das coisas, assim a natureza racional do ser humano, por seu lugar na ordem de todas as coisas, por seu fim/bem e pelo bem comum” (p. 420).
Sobre essa última corrente −à qual dedicaremos nossa próxima explanação−, invocando Vallet de Goytisolo, escreveu Daniel Serpentino:
“Se o direito (…) é o justo concreto, a coisa justa, ele reclama sua ‘determinação’ pelos juízes, advogados, promotores, procuradores, notários, assessores, particulares, etc. Não se trata, propriamente, de ‘aplicação’ do direito (como se o direito se confundisse com a lei positiva) ou de ‘adjudicação’ do direito (como se fosse uma faculdade subjetiva ou pretensão), mas de determinar a própria coisa justa (ipsa res iusta) devida no âmbito de cada relação jurídica, que é o justo na ordem das coisas, suposta, portanto, a realidade objetiva” (p. 420-421).
Prosseguiremos.
