(da série Registros sobre registros n. 210)
Des. Ricardo Dip
836. Tratemos agora de outras modalidades de usufruto, na trilha de assentada classificação doutrinária: usufrutos remuneratório, simultâneo, sucessivo, deducto e vidual.
Diz-se remuneratório o usufruto que se institui para compensar o usufrutuário em razão de fato que haja beneficiado o dominus rei (cf. Fioranelli).
Embora a causa intencional da instituição desse usufruto não interfira com sua natureza jurídica e suas características, o fim pontual da instituição (e nunca é demais repetir que a causa final é a primeira na ordem da intenção) se reflete em eventual pretensão compensatória, seja dando-a por inteiramente saldada, seja abrandando-a: remuneratio (onis), termo latino de que provém o vocábulo português remuneração, tem o sentido de recompensa; ainda que o remunerator (aquele que recompensa outrem) aja com o intento de satisfazer débito moral, sempre há a possibilidade de estimar-se juridicamente o benefício instituído, para contemplar eventual pretensão indenizatória que venha a apresentar o usufrutuário.
Não se confunde esse usufruto remuneratório com o instituído a título oneroso, equivale a dizer, o em que se dá “alguma retribuição em favor de quem concede” (Arnaldo Rizzardo, que examina o tema de sua viabilidade jurídica, apoiando o entendimento de Clóvis Beviláqua, Carvalho de Mendonça, Ney Rosa Goulart e Paulo Eurides Ferreira Seffrin, qual o de sua admissibilidade).
837. Simultâneo (conjunto, conjugado ou conjuntivo) é o usufruto que, num quadro de concomitância temporal, constitui-se em favor de mais de uma pessoa: “em favor de dois ou mais indivíduos” (Serpa Lopes), suposta a contemporaneidade de sua vigência; no Código civil brasileiro de 2002, lê-se tanto ao início de seu art. 1.411 (“Constituído o usufruto em favor de duas ou mais pessoas”), quanto na primeira parte do art. 1.946: “Legado um só usufruto conjuntamente a duas ou mais pessoas…”; previu-o o Código civil de 1916, no art. 740, inaugurando entre nós a disciplina legal desse usufruto.
Dois são os requisitos dessa classe de usufruto: o de ser conjunto e o de ser simultâneo; o advérbio latino simul tem a acepção de junto, juntamente, e o substantivo simultas, simultatis, acolhe a ideia da “ação de estar juntamente” (Torrinha). Há, pois, com a expressão usufruto simultâneo –que é a prevalecente na jurisprudência doutrinária– uma referência subjetiva (o de duas ou mais pessoas desfrutarem conjuntamente a coisa objeto) e outra referência relativa à circunstância de tempo.
O Código civil argentino, em redação bastante apropriada, enuncia no art. 2.821: “El usufructo puede ser establecido conjunta y simultaneamente a favor de muchas personas…”. É dizer: conjuntamente, em benefício de muchas personas (ou seja, mais de uma pessoa). Além, todavia, de ser conjunção subjetiva (de usufrutuários), deve ela ser simultânea, existente num mesmo tempo-duração, ou talvez melhor: coexistente, de sorte que o direito de um usufrutuário não exclua, ao mesmo tempo, a existência do direito de outro ou outros usufrutuários incidentes sobre uma só coisa.
Avulta, quanto à regência do usufruto simultâneo, o tema do direito de acrescer, ou seja, o de a parte ideal que caiba a um dos co-usufrutuários agregar-se, por sua morte, à de outro ou outros co-usufrutuários. O tema concerne ao atributo de divisibilidade do usufruto: ser possível sua “extinção por partes” (Rizzardo).
A disciplina desse direito de acrescer já nos vinha do Código civil de 1916 (art. 740) e recolheu-se, em essência, por igual no Código de 2002: “Constituído o usufruto em favor de duas ou mais pessoas, extinguir-se-á a parte em relação a cada uma das que falecerem, salvo se, por estipulação expressa, o quinhão desses couber ao sobrevivente” (art. 1.411). Vale por dizer que a norma contempla sob o modo de regra comum a extinção do usufruto relativo à parte ideal do co-usufrutuário morto, disposição essa que se molda com o disposto no inciso I do art. 1410 do mesmo Código, segundo a qual o usufruto se extingue “pela renúncia ou morte do usufrutuário”. Tem-se, pois, que, ordinariamente, com a morte do co-usufrutuário, dá-se a consolidação da parte ideal da coisa que lhe correspondia desfrutar. Cuida-se aí de uma “regra geral” (des. Francisco Loureiro), com que se impõe a consolidação das “quotas de propriedade plena nas mãos do nu-proprietário, na medida em que forem falecendo os usufrutuários” (Id.).
Nosso Código civil de 1916 dispunha ser possível excepcionar-se essa regra geral, por meio de “estipulação expressa” (art. 740). E essa disposição exceptiva também se abrigou no Código de 2002 (art. 1.411, como acima já ficou indicado; no mesmo sentido, cf. o art. 2.823 do Código civil argentino).
Também o art. 1.946 do vigente Código civil brasileiro refere-se ao direito de acrescer em matéria de usufruto legado; mas assim o dispõe de maneira que a regra comum (ou geral) é a favorável ao acrescentamento, não se exigindo manifestação expressa no testamento.
Sendo a norma desse art. 1.496 equivalente à do art. 1.716 de nosso Código civil de 1916, cabe aqui mencionar as lições correspondentes ao Código anterior, bastantes aqui, por sua notória autoridade, as de Clóvis Beviláqua e de Carvalho Santos.
Depois de o primeiro ensinar que a norma contempla a hipótese de “um só usufruto legado a diversas pessoas” –não se estendendo quer aos usufrutos não-conjugados, quer aos em que houver “distribuição de partes”–, salientou o caráter supletivo da disposição, admitindo-se, portanto, a recusa do testador quanto ao direito de acréscimo; “o testador pode manifestar livremente a sua vontade no sentido de alterar ou excluir o acrescentamento” (Carvalho Santos).
Tema de algum modo similar pode considerar-se quanto ao usufruto instituído por ato inter vivos. Com efeito, permitida a estipulação expressa do direito de acrescer, cabe possibilidade de o instituidor estipular em concreto de maneira subjetivamente vária acerca desse direito.
A hipótese pode assim exemplificar-se: o proprietário de um imóvel institui sobre este um usufruto simultâneo em favor de três co-usufrutuários, estipulando que, apenas quanto a um deles, possa configurar-se o direito de acrescer (ou seja, que, com a morte de um ou dos dois outros co-usufrutuários, possa esse beneficiário mais favorecido perseverar no usufruto da parte ou partes que fruíam os outros; mas não que, com o óbito desse usufrutuário a quem se concedeu o direito de acrescer, possam os co-usufrutuários sobrevivos exercer a faculdade de acrescentamento).
Com efeito, a própria letra do art. 1.411 do Código civil brasileiro de 2002 –“extinguir-se-á a parte em relação a cada uma das que falecerem, salvo se, por estipulação expressa, o quinhão desses couber ao sobrevivente”– parece não recusar a ideia de que, em relação a cada um dos co-usufrutuários, possa estabelecer-se a disposição de vontade do testador. Também assim já aparentava ausência de óbice o próprio texto do art. 740 do Código de 1916: “(…) extinguir-se-á parte a parte em relação a cada um dos que falecerem, salvo se, por estipulação expressa, o quinhão desses couber aos sobreviventes”.
Com admitir, sem limitação expressa, quanto ao direito de acrescer, o exercício da autonomia da vontade do instituidor do usufruto, do Código vigente (art. 1.411) não cabe extrair alguma norma implícita de restrição da mesma vontade do proprietário da coisa dada em usufruto.
Prosseguiremos.