Dos vários usufrutos

(da série Registros sobre registros n. 209)

                                                                             Des. Ricardo Dip

 

833. Quanto ao objeto –e tornemos a lembrar, objeto (obiectus, a, um) é o que está posto à frente do sujeito, é o termo a que se dirige o conhecimento, ou ainda, sob o aspecto material, o de que trata uma dada ciência, vale dizer, algo que transcende o sujeito cognoscente–, mas se dizia: quanto ao objeto (material), o usufruto pode ser geral ou particular.

 

O vigente Código civil brasileiro enuncia em seu art. 1.390: “O usufruto pode recair em um ou mais bens, móveis ou imóveis, em um patrimônio inteiro, ou parte deste, abrangendo-lhe, no todo ou em parte, os frutos e utilidades” (no mesmo sentido, cf. o art. 714 do Código civil de 1916). Assim, tanto pode o usufruto incidir sobre um patrimônio inteiro (usufruto geral ou universal: p.ex., uma herança), quanto aplicar-se sobre parte desse patrimônio (usufruto particular).

 

O usufruto geral, pois, tem por objeto, em sentido próprio, uma universalidade de bens (Ademar Fioranelli), mas Clóvis Beviláqua estendeu o termo para abrigar também a parte ideal dessa universalidade; na mesma linha o art. 2.827 do Código civil argentino: “El usufructo es universal, cuando comprende una universalidad de bienes, o una parte alícuota de la universalidad (…)”.

 

834. Quanto a sua compreensão, o usufruto pode ser pleno ou restrito: pleno, diz Fioranelli, é o que “compreende todos os frutos e utilidades que a coisa produz”; restrito, prossegue o autor, é o usufruto em que “algumas utilidades são excluídas do gozo da coisa”.

 

O texto do art. 716 do Código civil brasileiro de 1916 –e que corresponde ao do art. 1.392 do Código civil atual (“Salvo disposição em contrário, o usufruto estende-se aos acessórios da coisa e seus acrescidos”)– parece legitimar o uso do termo “extensão” para classificar o usufruto nesses dois modos, pleno e restrito. É o termo de que se vale Ademar Fioranelli. Não diversamente, Clóvis Beviláqua ensinou que “os acessórios e acréscimos da coisa fazem com ela uma unidade, sobre a qual se estende, naturalmente, o usufruto” (o itálico não é do original).

 

Não está mal esse uso do termo extensão, mas aparenta ser melhor valermo-nos do termo compreensão, o que, de resto, guarda harmonia com a referência mesma de Fioranelli ao conceituar o usufruto pleno, o que “compreende todos os frutos, etc.”.

 

É verdade que a compreensão e a extensão, ainda que inversamente, sempre emergem como propriedades recíprocas dos conceitos mentais. Mas a compreensão diz diretamente com o que é formal e característico nesses conceitos (cf. Leonardo Van Acker), de maneira que, diante do enunciado do art. 1.392 do Código civil brasileiro, deve tomar-se como traço configurador ordinário do usufruto a unidade do principal e dos acessórios da coisa usufruída; é dizer, que, ordinariamente, o usufruto compreende o principale e os accessoria rei, e é daí que emerge a propriedade lógica de sua extensão, como algo que lhe secunda a compreensão. Assim, não se trata de estender aos acessórios um conceito que, normalmente, não os compreenda, mas, isto sim, de reconhecer o ordinário de sua compreensão.

 

Como ficou dito, salvo disposição em contrário, os acessórios da coisa usufruída e seus acrescidos incluem-se no objeto do usufruto. O Código civil argentino possui disposição expressa sobre a obrigação de o dono da coisa entregar ao usufrutuário o objeto gravado pelo usufruto, “con todos sus accesorios en en estado que se hallare, aun cuando no pueda servir para el uso o goce propio de su destino” (art. 2.910).

 

Por ser regra comum –e sempre ressalvada a hipótese de previsão exceptiva (que não há no quadro brasileiro: veja-se a regra do art. 1.392 do Código civil)–, a de o usufruto compreender os acessórios da coisa abrange o aumento da área do imóvel usufruído, em situações, p.ex., como a da aluvião ou avulsão. Nesse mesmo sentido vai o Código civil da Argentina (art. 2.867; Velez Sarsfield, no entanto, fez referência à doutrina contrária, de Aubry e Rau, limitando o direito do usufrutuário às acessões que houvesse ao tempo da instituição do usufruto, sem abarcar os acréscimos posteriores.

835. Quanto à duração, o usufruto pode ser vitalício ou temporário, do primeiro dizendo Ademar Fioranelli durar “enquanto viver o usufrutuário, ou não ocorrer qualquer causa de extinção”; temporário, o “submetido a termo preestabelecido” (lê-se, a propósito, no art. 1.410 do Código civil brasileiro que o usufruto se extingue, entre outras causas, “pelo termo de sua duração” –inc. II). No plano semântico, deixe-se dito que tem razão Carlos Roberto Gonçalves em desfiar alguma crítica a essa designação “usufruto temporário”, porquanto, bem o observou, “todo usufruto é, por definição, temporário”.

 

Como quer que seja,  com a noção de usufruto temporário tem-se, não só, a do usufruto a termo (o que se institua com indicação de “um momento preciso para a extinção do direito” –Clóvis Beviláqua), mas também a do usufruto sob condição resolutiva: p.e., “enquanto permanecer uma pessoa no estado de viuvez” (Arnaldo Rizzardo). Veja-se o que disse Clóvis Beviláqua a esse propósito: “Quando o usufruto for constituído por uma determinada causa ou razão jurídica, se esta cessa, desaparece o direito do usufrutuário” (e o autor exemplifica, aventando a hipótese de um usufruto instituído para auxiliar os estudos de alguém; terminados esses estudos, ou abandonando-os o favorecido, “cessa a razão de ser do usufruto”).

 

Com razão, Ademar Fioranelli inclui nessa divisão do usufruto segundo o critério do tempo-duração as hipóteses do usufruto próprio ou perfeito e usufruto impróprio ou imperfeito. Aquele, recaindo sobre coisas inconsumíveis e infungíveis; o impróprio, sobre coisas consumíveis e fungíveis; este é o que, tradicionalmente, denomina-se quase usufruto.

 

A distinção dessas espécies está em que, com o usufruto próprio ou perfeito, a fruição não modifica a substância da coisa desfrutada (ainda que ela possa, de algum modo, deteriorar-se pelo tempo ou pelo uso), ao passo em que o quase fruto incide em “cosas que serían inútiles al usufructuario si no las consumiese, o cambiase su sustancia, como los granos, el dinero, etc.”  (art. 2.808 do Código civil argentino).

 

Clóvis Beviláqua disse que o usufruto impróprio “violenta a natureza própria do usufruto”, porque –bem se avista– “no quase usufruto o usufrutuário adquire a propriedade do bem”. Daí que conclua o autor haver, no usufruto imperfeito, “um só sujeito, que é o usufrutuário, com direitos de dono”. Nessa mesma trilha, o Código civil argentino enunciou: “El cuasi-usufruto transfiere al usufructuario la propiedad de las cosas sujetas a este usufructo, y puede consumirlas, venderlas, o disponer de ellas como mejor le parezca” (art. 2.811). O proprietário das coisas dadas em usufruto imperfeito não se prejudica, todavia, pela transferência de seu domínio, porque, sendo coisas fungíveis, podem ser substituídas (cf. Vélez Sarsfield).

 

Acolheu-se o quase usufruto no direito brasileiro antes mesmo de nosso Código civil de 1916, embora não houvesse, então, regra local expressa (admitia-se esse usufruto, à altura, com apoio na doutrina e no direito romano). O Código de 1916 permitiu-o de maneira explícita: “As coisas que se consomem pelo uso, caem para logo no domínio do usufrutuário, ficando, porém, este obrigado a restituir, findo o usufruto, o equivalente em gênero, qualidade e quantidade, ou, não sendo possível, o seu valor, pelo preço corrente ao tempo da restituição” (art. 726). Persiste, de algum modo, é verdade, no Código civil brasileiro de 2002, a referência expressa ao quase usufruto, mas cabe notar que o texto legal vigente apenas se dirige ao usufruto impróprio de “acessórios e acrescidos” (§1º do art. 1.392), sem a maior abrangência que havia no Código de 1916 (nesse sentido, p.ex., a doutrina de Francisco Eduardo Loureiro).