(da série Registros sobre Registros n. 430)
Des. Ricardo Dip
1.241. O item 29 do inciso II do art. 167 da Lei 6.015 refere-se à averbação da extinção da concessão de direito real de uso, ato de caráter secundário que se vincula ao prévio registro do direito real de uso, matéria de que já tratamos nesta série “Registros sobre Registros”.
Repassemos um tanto esse assunto, sempre com a ideia de que iteratio mater studiorum est.
Prevê-se no item 7º do inciso I do art. 167 da mesma Lei 6.015 a hipótese do registro stricto sensu do usufruto, da habitação e do uso.
O Código civil brasileiro de 2002 enuncia no caput de seu art. 1.412: “O usuário usará da coisa e perceberá os seus frutos, quanto o exigirem as necessidades suas e de sua família” (caput do art. 1.412).
Assim, o direito de uso é o direito real de um possuidor direto (Clóvis Beviláqua), pessoa física (ou, embora controversamente, pessoa jurídica), de aproveitar-se (ter o gozo de) de coisa alheia, seu objeto material, de modo limitado –quer dizer, sempre salva rei substantia e indivisível–, direito temporário, porque é um desdobramento do domínio, restrito o aproveitamento da coisa às necessidades pessoais do usuário e de sua família, uma vez que se trata de direito constituído intuitu personæ.
O direito real de uso −alguma vez designado como «pequeno usufruto»− tem, para diferenciar-se do usufruto, a nota de sua finalidade: atender às necessidades pessoais do titular e de sua família. Este é seu limite.
O Código civil brasileiro possui normas relativas à determinação dessas necessidades pessoais do usuário e de sua família, tanto no plano objetivo ou quantitativo, quanto relativamente a seus sujeitos.
Assim, quanto ao aspecto objetivo, lê-se no § 1º do art. 1.412 desse Código: “Avaliar-se-ão as necessidades pessoais do usuário conforme a sua condição social e o lugar onde viver”.
E, no que respeita ao plano subjetivo, enuncia o § 2º do mesmo art. 1.412: “As necessidades da família do usuário compreendem as de seu cônjuge, dos filhos solteiros e das pessoas de seu serviço doméstico”.
Falamos há pouco que o direito real de uso é um desdobramento do domínio. Vem a calhar, no entanto, referir uma importante lição de Augusto Teixeira de Freitas, observando que pode haver uso e fruto (fruição) sem o desdobramento jurídico do domínio, “como acontece na locação, que só dá ao locatário um direito pessoal”. Pode ainda acrescentar-se que isso também ocorre no comodato. É interessante apontar que, numa visualização puramente fenomênica externa, tanto quanto o usus está factualmente destacado do domínio, também o estão o usufruto, a locação e o comodato. O que distingue esses institutos não é, portanto, a factualidade do uso e da fruição, mas a valoração jurídica –essencialmente em dependência com as ordenações positivas. Em outras palavras: a lei é que dirá quando estamos diante de um direito real, por mais que caiba ao intérprete extrair do texto legal o significado normativo correspondente.
Daí que seja possível, no futuro, eventualmente, admitir-se uma distinta valoração jurídica da locação e do comodato, porque nesses institutos se tem, quanto à res locada, fruída, usada ou dada em comodato, um destino econômico bastante semelhante. Pareceria bem que −por lei, não por decisão administrativa, ainda que judicial− considerar a utilidade da inscrição do comodato imobiliário.
O conteúdo do direito real de uso é o conjunto de poderes de uso e fruição limitada de uma coisa; essa coisa é o que constitui o objeto material do mesmo direito de uso. Pode tratar-se tanto de coisa imóvel, quanto móvel, de que o usuário se faz possuidor direto. Parece não caber o direito real de uso sobre coisa fungível ou consumível –está-se aí perante o quase uso−, porque se daria um desvio de finalidade, frustrando-se o destino perseverante de atendimento das necessidades dos beneficiários.
O uso de que se trata, pois, é direito sobre coisa alheia, móvel ou imóvel, mas constituído intuitu personæ, destinado a atender às necessidades do usuário e às de sua família (art. 1.412 do Código civil brasileiro de 2002).
Daí que seja indivisível e intransmissível (inalienável). Daí que não possa suportar ônus reais, nem penhorar-se (lê-se no art. 832 do Código de processo civil brasileiro de 2015: “Não estão sujeitos à execução os bens que a lei considera impenhoráveis ou inalienáveis”; combine-se com o que se diz no inciso I de seu art. 833, afirmando serem impenhoráveis “os bens inalienáveis e os declarados, por ato voluntário, não sujeitos à execução”). Averbe-se uma ressalva: Carvalho Santos, com amparo em Demolombe e Duranton, sustenta a viabilidade jurídica da penhora e da hipoteca do direito de uso desde que autorizados pelo dominus. Tampouco pode ceder-se o uso, que deve “ser exercido pessoalmente” (Orlando Gomes), defeso o exercício “por via de terceiro” (Lafayette).
Dispõe o art. 1.413 do Código civil brasileiro de 2002 serem “aplicáveis ao uso, no que não for contrário à sua natureza, as disposições relativas ao usufruto”, não se admitindo, embora, a instituição do uso legal (Arnaldo Rizzardo, Orlando Gomes).
Pode o uso adquirir-se por usucapião: ““Ao usuário é possível valer-se da prescrição aquisitiva para a constituição do direito de uso, nas mesmas condições estabelecidas para o usufruto (…)” (Benedito Silvério Ribeiro, Tratado de usucapião, item 124), diversamente do que ocorre no direito português: “Não podem adquirir-se por usucapião: a) As servidões prediais não aparentes; b) Os direitos de uso e de habitação” (art. 1.293º).
Por fim, para a extinção do direito de uso cabe reportar-se às causas de extinção do usufruto, salvo quanto ao não uso, que é causa extintiva do usufruto (inc. VIII do art. 1.410 do Código civil brasileiro), mas não do direito de uso. Distingue-se, entretanto, de uma parte, o não uso, e, de outra, a cessação da necessidade pessoal ou familiar que justificou a instituição, hipótese em que se admite considerar extinto o direito de uso (veja-se abaixo).
Assim, nos termos do art. 1.410 do Código civil, extingue-se o uso, “cancelando-se o registro no Cartório de Registro de Imóveis”:
• pela renúncia ou morte do usuário;
• pelo termo de sua duração;
• pela extinção da pessoa jurídica, em favor de quem o uso foi constituído, ou, se ela perdurar, pelo decurso de trinta anos da data em que se começou a exercer;
• pela cessação do motivo de que se origina;
• pela destruição da coisa;
• pela consolidação;
• por culpa do usuário, quando aliena, deteriora, ou deixa arruinar os bens, não lhes acudindo com os reparos de conservação.