Averbação da extinção da concessão de uso especial para fins de moradia

(da série Registros sobre Registros n. 429)

                                                             Des. Ricardo Dip

1.240. Trilhando a ordem sequencial do texto da Lei 6.015, de 1973, tivemos já a oportunidade de considerar o averbamento da extinção da concessão de uso especial para fins de moradia, por ser matéria prevista no item 19 do inciso II do art. 167 da mesma Lei 6.015.

           E por que, agora, haveríamos ainda de tratar dessa matéria? É que o item 28 do referido inciso II do art. 167 reitera a previsão de averbar-se “a extinção da concessão de uso especial para fins de moradia”.

           A primeira indicação resultou da Lei 10.257, de 10 de julho de 2001, normativa dirigida a regulamentar o disposto nos arts. 182 e 183 da Constituição brasileira de 1988,       estabelecendo “diretrizes gerais da política urbana”. Lê-se no art. 57 dessa Lei 10.257:

“O art. 167, inciso II, da Lei n. 6.015, de 1973, passa a vigorar acrescido dos seguintes itens 18, 19 e 20:

‘Art. 167 (…)

II – (…)

18) da notificação para parcelamento, edificação ou utilização compulsórios de imóvel urbano;

19) da extinção da concessão de uso especial para fins de moradia;

20) da extinção do direito de superfície do imóvel urbano’" (o destaque não é do original).

           Ocorre que sobreveio a Lei 12.424, de 16 de junho de 2011, constando de seu art. 4º:

•          “Os arts. 167, 176, 205, 213, 221, 235, 237-A e 290-A da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, passam a vigorar com a seguinte redação:

‘Art. 167 (…)

  1. (…)

36. da imissão provisória na posse, quando concedida à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios ou às suas entidades delegadas, e respectiva cessão e promessa de cessão;

42. da conversão da legitimação de posse em propriedade, prevista no art. 60 da Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009;

  1. (…)

27. da extinção da legitimação de posse;

28. da extinção da concessão de uso especial para fins de moradia;

29. da extinção da concessão de direito real de uso.

(…)” (a ênfase gráfica não está na origem).

           Parecerá cômodo observar que a posterioridade da Lei 12.424/2011 em relação à Lei 10.257/2001 solveria prontamente a questão, supresso da Lei 6.015 o texto do item 19 do inciso II do art. 167 da Lei 6.015, substituído pelo enunciado do item 28 do mesmo inciso II do art. 167. Esta solução pode acomodar-se à parte final do que diz o § 1º do art. 2º do Decreto-lei 4.657, de 4 de setembro de 1942 −nossa clássica “Lei de introdução ao código civil”, nome esse tradicional que se alterou para o de “Lei de Introdução às normas do direito brasileiro” (Lei 12.376, de 30 de dezembro de 2010): “A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”.

           Pudera o prestimoso cuidado legislativo de alterar uma designação tradicional também estender-se ao conteúdo dos textos legais, evitando-lhes, tal o caso, a mera repetição.

           Todavia, apontada a aparente revogação do texto (não da norma) do aludido item 19, há uns poucos pontos que se devem ainda prudentemente considerar.

           Nem sempre a reiteração textual em leis diversas é indicativa da intentio legislatoris de revogar o texto anterior. Pode apresentar-se a intenção de reforçar a normativa, ainda que isto mais pareça dizer respeito a leis diversas e não a reiterações dentro numa só e mesma lei.

           Tenha-se em conta uma ilustração, relativa às ideias de «posse velha» e «posse nova». O art. 508 do Código civil brasileiro de 1916 dispunha: “Se a posse for de mais de ano e dia, o possuidor será mantido sumariamente, até ser convencido pelos meios ordinários”. Adveio o Código nacional de processo civil de 1939, confirmando essa norma, acrescentando-lhe, embora, algumas referências destinadas às provas correspondentes: “Se a turbação ou violência datar de menos de ano e dia, o autor poderá requerer mandado de manutenção ou de reintegração initio litis, provando, desde logo: I - a sua posse; II - a turbação ou violência praticada pelo réu;  III - a data da turbação ou violência;  IV - a continuação da posse, embora turbada, na ação de manutenção, e a perda da posse, na ação de reintegração”.

           Não seria nada irrazoável considerar revogado o texto do art. 508 do Código civil (de 1916), ante o fato da reiteração normativa disposta no Código processual de 1939.

           Veja-se, no entanto, o problema que disso proviria: em 1973, promulgou-se o excelente “Código Buzaid”, Código de processo civil que já não continha norma referente às posses velha e nova. Enfim, a antiga iteratio normæ teria revogado o art. 508 do Código civil de 1916? A revogação do texto revocatório teria repristinado o que dispunha esse art. 508?

           Claro que esses problemas se evitariam com um maior cuidado no processo legístico, mas o fato é que, para nosso caso em apreciação, poderíamos também indagar: suponha-se venha a revogar-se a Lei 12.424, de 2011; com isto passaria a recusar-se a averbação que se previra com a Lei 10.257, de 2001, quanto à extinção da concessão de uso especial para fins de moradia?            Isso põe à mostra a conveniência de apreciar de maneira prudente a possível revogação do item 19 do inciso II do art. 167 da Lei 6.015, parecendo mais discreto considerar que o aparente lapso legislativo seja tomado sob a óptica de uma intentio confirmationis.