Averbação da extinção de legitimação de posse (quinta parte)

(da série Registros sobre Registros n. 428)                                                            

Des. Ricardo Dip

1.239.   Para concluir o capítulo do averbamento, no ofício imobiliário, da extinção da legitimação de posse −matéria do item 27 do inciso II do art. 167 da Lei nacional 6.015, de 1973−, percorramos, ainda uma vez de maneira breve, a trilha já antes referida da legislação de regência desse instituto de legitimação possessória.

           Recolhamos aqui a acertada referência de Vitor Kümpel e Carla Modina Ferrari, a propósito da legitimação de posse cujo “objetivo /é o de/ transferir o patrimônio público para o domínio particular, de modo a conferir juridicidade a situações fáticas consolidadas” (Tratado Notarial e Registral, vol. 5-1, item 3.1.2.1.2).

           Como o vimos, o regime inaugural de ocupação das terras no Brasil foi o de sesmarias, regime que, descendendo das presúrias resultantes da Reconquista cristã, já se aplicara com êxito nas ilhas atlânticas de domínio lusitano: Madeira, Porto Santo, Açores, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe. Mas, no Brasil, o sucesso desse regime de ocupação territorial foi muito escasso, ressalvado algum êxito das capitanias de São Vicente e de Pernambuco. Por isso, em 1648, o Rei Dom João III instituiu o Governo Geral, sediado na Bahia, cujos fins eram o de, sem extinguir o sistema das capitanias hereditárias, apoiar os donatários, coordenando-se a tarefa colonizadora (ou talvez melhor se diga: civilizadora). Houve de início apenas três sucessivos governadores gerais (Tomé de Sousa, entre 1549 e 1553; Duarte da Costa, de 1553 a 1557; e Mem de Sá, de 1557 a 1572), bipartindo-se, em 1572, o governo geral −com Luís de Brito e Almeida, em Salvador, e o desembargador português António Salema, no Rio de Janeiro. Em 1578, reunificou-se a governança geral com Diogo Lourenço da Veiga. O sistema prosseguiu até 1808. Quatro décadas mais tarde, promulgou-se a Lei imperial 601, de 1850, relativa à legitimação de posse, e, depois disso, foi vária a legislação expedida entre nós acerca dessa matéria: por seu relevo, mencionemos o Estatuto de Terra (Lei 4.504, de 30-11-1964), a Lei 6.383/1976 (de 7-12), o Decreto-lei 9.760/1946 (de 5-12), a Instrução normativa 80 (de 13-5-2014), instrução essa editada pelo Presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, e a Lei 13.645, de 11 de julho de 2017 −relativamente aos imóveis objeto de regularização fundiária urbana (Reurb).

           Diz o Estatuto da Terra ser a todos assegurada “a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função social” (art. 2º), indicando os supostos da «posse agrária» (cf. também os arts. 3º e 7º da Instrução normativa 80, de 2014):

•          a posse agrária tem por objeto terras devolutas federais (art. 11);

•          terras cuja superfície não ultrapasse determinada dimensão (cf. os arts. 4º, inc. III, 97, inc. II, e 98 do Estatuto, e ainda o art. 29 da Lei 6.383);

•          terras nas quais tenha o ocupante sua moradia habitual e efetiva atividade de cultivo (art. 102);

•          terras, além disso, possuídas há mais de um ano, por ocupante que, além disso, não seja proprietário de outro imóvel rural (inc. I do art. 29 da Lei 6.383), sem prejuízo da preferência aquisitiva prevista no inciso II do art. 97 do Estatuto.

           A transferência do domínio rural ao posseiro exige o processo administrativo de legitimação de posse (art. 99 do Estatuto), processo disciplinado pela Lei 6.383.

           Vem de molde referir que o art. 13 do Estatuto prevê o registro das terras devolutas discriminadas em favor da União, é dizer: propicia −ou mais exatamente impera− a inscrição de um bem público no registro de imóveis. Lê-se nesse art. 13: “Encerrado o processo discriminatório, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA providenciará o registro, em nome da União, das terras devolutas discriminadas, definidas em lei, como bens da União”.

           Quanto, enfim, à situação urbana, observemos que a Lei 11.977/2009 (de 7-7) foi o diploma que trouxe de volta, entre nós, a legitimação de posse imobiliária urbana, já outrora admitida na Lei imperial 601, de 1850. Essa Lei 11.977 previu que a legitimação de posse, uma vez registrada, “constitui direito em favor do detentor da posse direta para fins de moradia” (art. 59), admitindo-se ainda (art. 60), que “o detentor do título de legitimação de posse, após 5 (cinco) anos de seu registro, poderá requerer ao oficial de registro de imóveis a conversão desse título em registro de propriedade, tendo em vista sua aquisição por usucapião, nos termos do art. 183 da Constituição Federal”. 

           Superou-se a Lei 11.977 pela Medida provisória 759 (de 22-12-2016), que se converteu, por fim, na Lei 13.465/2017 (de 11-7), entre cujas importantes indicações se destaca a da inexigibilidade do processo demarcatório para o reconhecimento da legitimação (§ 3º do art. 19: “Os procedimentos da demarcação urbanística não constituem condição para o processamento e a efetivação da Reurb”).

           Tanto aqui nos interessa, cabe considerar o art. 27 dessa Lei 13.465, em que se lê: “O título de legitimação de posse poderá ser cancelado pelo poder público emitente quando constatado que as condições estipuladas nesta Lei deixaram de ser satisfeitas, sem que seja devida qualquer indenização àquele que irregularmente se beneficiou do instrumento”.

           Essa norma reproduz o que antes se incluíra na Lei 11.977, de 2009, com o texto da Lei 12.424, de 16 de junho de 2011: “Art. 60-A. O título de legitimação de posse poderá ser extinto pelo poder público emitente quando constatado que o beneficiário não está na posse do imóvel e não houve registro de cessão de direitos”. Indicou-se no par. único desse art. 60-A: “ Após o procedimento para extinção do título, o poder público solicitará ao oficial de registro de imóveis a averbação do seu cancelamento, nos termos do inciso III do art. 250 da Lei no 6.015, de 31 de dezembro de 1973”.

           Tanto se verifica do texto do art. 27 da Lei 13.465 não se prevê, expressamente, a instauração de um procedimento administrativo para a extinção do título, ao revés do que apontava a Lei 11.977. Mas, embora o disposto nesse art. 27 aponte a suficiência da via administrativa para extinguir-se a legitimação, haverá, à luz das vigentes normas constitucionais, a necessidade do contraditório (item LV do art. 5º da Constituição de 1988: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”).

           Saliente-se que, presente cessão de direitos, ao cessionário deverá propiciar-se o direito de ampla defesa e o direito de contraditório.

           A averbação do cancelamento previsto no art. 27 da Lei 13.465 −vale dizer, a averbação da extinção da legitimação de posse− é um ato registral secundário (ou acessório, se assim se preferir considerar), o que supõe a existência de anterior registro da legitimação.