(da série Registros sobre Registros n. 413)
Des. Ricardo Dip
1.230. Tal o deixamos indicado ao fim da explanação anterior desta série, há um tema controverso que diz respeito −não só, mas também− ao direito de superfície, que é o da vigência da Lei 10.257, de 10 de julho de 2001, diante da promulgação do Código civil de 2002.
É que esse Código tratou do direito de superfície, arrolando-o entre os direitos reais (inc. II do art. 1.225), prevendo em seu art. 1.369:
• «O proprietário pode conceder a outrem o direito de construir ou de plantar em seu terreno, por tempo determinado, mediante escritura pública devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis».
O mesmo Código disciplinou a autorização de obras no subsolo (par. único do art. 1.369), reafirmando ainda a possibilidade de esse direito de superfície ser oneroso ou gratuito, admitindo a suscetibilidade de parcelamento do preço na superfície onerosa (art. 1.370), e reiterando quer a suscetibilidade de o direito de superfície transferir-se a terceiro (art. 1.371), quer a preferência tanto do titular do domínio do terreno, quanto do titular da superfície (art. 1.373).
Com efeito, isso tudo já se previra na Lei 10.257, em que se lê possa o direito de superfície ser oneroso ou gratuito (§ 2º do art. 21), e sua transferência inter vivos (§ 4º do art. 21) ou mortis causa (§ 5º do mesmo art. 21), etc.
Daí que se tenha de cogitar se o tratamento dispensado pelo Código civil ao direito de superfície revogou, seja no todo, seja em parte, a disciplina correspondente da Lei 10.257. Ou, diversamente, se essa lei permanece em vigor também na parte relativa ao direito de superfície.
Conforme observamos já ao tratar do registro constitutivo da superfície, a doutrina civilista brasileira dissidia nesse ponto, havendo quem sustente que haja um regime complementar desses dois diplomas normativos.
Comecemos por esta lição do saudoso Luciano de Camargo Penteado, que sustenta a convivência das duas normativas: «A coexistência de dois tipos de direito de direito de superfície, um regulado pelo ECid e outro pelo CC, entretanto, não implica revogação de nenhum deles, nem tampouco derrogação. As duas modalidades de direito real convivem, uma especial, outra geral, de direito comum, recebendo influências recíprocas das leis instituidoras (…)» (Direito das coisas, ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2008, p. 404-405; assim, também pensa Arnaldo Rizzardo, Direito das coisas, ed. Gen-Forense, 8.ed., Rio de Janeiro, 2016, p. 880; contra: Carlos Roberto Gonçalves, Direito civil brasileiro, ed. Saraiva, 10.ed., 2015, vol. 5, p. 45-451).
Essa controvérsia tem seus reflexos no registro imobiliário.
Nada obstante a reconhecida autoridade de Carlos Roberto Gonçalves, parece mais provável a tese que afirma a complementaridade dos regimes da Lei 10.257 e do Código civil acerca do direito de superfície.
Nesse sentido, inclinou-se a I Jornada de Direito Civil do Conselho Federal da Justiça, tal se lê em seu enunciado 93: «As normas previstas no Código Civil sobre direito de superfície não revogam as relativas a direito de superfície constantes do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001) por ser instrumento de política do desenvolvimento urbano».
Há distinções na disciplina ditada com a Lei 10.257 e na assinada no Código civil. Assim, o direito de superfície da Lei 10.257 diz respeito a imóvel urbano, ao passo em que o previsto no Código civil estende-se ao solo rural. Além disso, conforme o Código, o direito de superfície terá sempre tempo determinado (art. 1.369), já o art. 21 da Lei 10.257 prevê que esse direito se constitua «por tempo determinado ou indeterminado». Pelo Código, o direito de superfície não abrange, ressalvada disposição em contrário, o direito de o superficiário utilizar o subsolo (par. único do art. 1.369), o que não se proíbe no Estatuto da Cidade.
Daí que, tanto se considere vigente a Lei 10.257 quanto às normas relativas ao direito de superfície, não importa já que se constitua por tempo determinado ou indeterminado.
Há algo que parece fortalecer a tese de convivência dos dois tipos de superfície: é que o Estatuto da Cidade versa apenas a hipótese do direito de superfície relativo a pessoa jurídica de direito público interno, ao passo em que o Código civil, embora também se aplique a essa hipótese de superfície constituída por pessoa pública, refere-se ainda a imóveis particulares, ressalvando a disciplina de lei especial.
Veja-se, a propósito, o art. 1.377 do Código civil: «O direito de superfície, constituído por pessoa jurídica de direito público interno, rege-se por este Código, no que não for diversamente disciplinado em lei especial».
Adotando-se o critério conciliatório das duas normativas, saber qual lei aplicar resulta, num primeiro momento, das pessoas que intervêm na relação de superfície. Se apenas particulares, aplica-se o Código civil. Se pessoa jurídica de direito público interno, o Estatuto da Cidade. Mas, num segundo passo, se o imóvel for rural, sempre há de incidir o Código civil, porque o Estatuto da Cidade se restringe aos imóveis urbanos.
Assinale-se que a Lei de registros públicos prevê que se registre (em sentido estrito) a constituição do direito de superfície de imóvel urbano (item 39 do inciso I do art. 167). Calha que o Código civil admite o direito de superfície sobre imóvel rural. Sem embargo da escassez de julgados acerca do tema, tem-se, na Tutela Provisória em Ação Cível Originária 3.134, julgada no STF (28-6-2018), referência ao «direito de superfície sobre áreas destinadas à regularização fundiária urbana e rural».
Lê-se no caput do art. 1.369 do Código civil: «O proprietário pode conceder a outrem o direito de construir ou de plantar em seu terreno, por tempo determinado, mediante escritura pública devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis». Tenha-se em conta não se distinguir, no texto, a natureza urbana ou rural do terreno.
Em acréscimo, tratando-se, com o instituto da superfície, de um direito real (inc. II do art. 1.225 do Código civil), é aplicável o disposto no art. 1.227 do mesmo Código: «Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (arts. 1.245 a 1.247), salvo os casos expressos neste Código».
Assim, em que pese ao fato de a Lei 6.015 apenas referir-se ao registro (stricto sensu) do título constitutivo do direito de superfície sobre imóvel urbano, deve admitir-se também registrável −em sentido estrito− a causa jurídica que tem potência para constituir-se o direito real de superfície de imóvel rural. Quanto à extinção do direito de superfície, como já se referiu e para concluir, a Lei 10.257 indicou o averbamento no registro de imóveis (§ 2º do art. 24, acrescentando-se, tal o dispõe seu art. 57, o item 20 no inc. II do art. 167 da Lei 6.015).