Averbamento da locação para os fins da preferência (parte 1)

(da série Registros sobre Registros n. 407)

                                                  Des. Ricardo Dip

1.213.  O item 16 do inciso II do art. 167 diz respeito à averbação «do contrato de locação, para os fins de exercício de direito de preferência».  

         Essa previsão de averbamento da locação vem de par com a indicação legal do registro stricto sensu da mesma locação quando, em seu contrato, «tenha sido consignada cláusula de vigência no caso de alienação da coisa locada» (item 3 do inc. I do mesmo art. 167). 

         Reiterando, em parte, algumas das considerações já antecipadas ao tratar-se, nesta série «Registros sobre Registros», da locação clausulada com o pacto de sua vigência na hipótese de alienação do imóvel, observemos, por primeiro, que o tema envolve −por mais que isso não seja matéria de debate comum na doutrina brasileira− a discussão sobre a natureza real ou pessoal da locação.

         Não se desconhece, é verdade, que os direitos reais estão previstos em numerus clausus, vale dizer, não se admite a criação de novos e inominados direitos reais pela só vontade dos particulares. Mas isso não significa haja indispensável assinação de nomes aos direitos reais instituídos pelo legislador. Ou seja, à lista de direitos reais expressamente indicados como reais na lei (p.ex., os arrolados no art. 1.225 do Código civil brasileiro vigente) podem concorrer outros −constantes da lei−, ainda que não se enunciem, explicitamente, como direitos reais.

         Esse parece ser o caso da locação a que se junte o direito de preferência, situação harmônica, no mais, com o que dispõe o art. 958 do Código civil nacional: «Os títulos legais de preferência são os privilégios e os direitos reais».

         Deixemos somente apontada −ó que basta neste passo− a discussão doutrinária sobre a natureza jurídica da locação –se de direito real ou de direito obrigacional–, observando, de resto, que a tradição brasileira é, nada obstante se adote uma ou outras dessas classificações, pelo acesso da locação ao registro público.

         Com efeito, o Código civil brasileiro de 1916 −o notável Código Beviláqua, de tão larga e feliz vigência (porque acomodado aos costumes do povo)−, dizia no caput de seu art. 1.197: «Se, durante a locação, for alienada a coisa, não ficará o adquirente obrigado a respeitar o contrato, se nele não for consignado a clausula da sua vigência no caso de alienação, e constar de registro público». Essa norma abrangia tanto a locação de coisas móveis, quanto de imóveis; isso o reconheceu expressamente Clóvis Beviláqua: «O preceito é geral: abrange móveis e imóveis».

         Por isso mesmo, pelo fato de o objeto da locação, nesse art. 1.197 do Código de 1916, abranger móveis e imóveis, esse mesmo dispositivo referia-se a registro público, sem indicar nenhuma de suas espécies. Isso conduziu a um reclamo de Philadelpho Azevedo: «A lei fala em registro público  e, tratando-se de um dos muitos casos da zona intermediária entre o direito material e o formal e em que difícil é a sua distinção, facilmente se demonstra a conveniência de sua regulação (…)».  

         A regulação veio logo. O Decreto 12.437, de 3 de janeiro de 1917, dispôs em seu art. 3º:  

«No registro de títulos e documentos, criado pela lei n. 973, de 2 de janeiro de 1903, e pelo modo do processo que estabelece o decreto n. 4.775, de 16 de janeiro do mesmo ano, ou, nos Estados, em que não tiver sido criado, pelo da regulamentação do provimento que o suprir, continuará:

O registro do contrato de locação de cousa, com a cláusula de ser o adquirente obrigado a respeitá-lo, no caso de alienação (art. 1.197)

         A Lei n. 973/1903, a que se referiu o Decreto 12.437, criara o «ofício privativo vitalício do registro facultativo de títulos, documentos e outros papéis» (art. 1º), e foi, portanto, a esse registo −o de títulos e documentos− que se atribuiu, especificamente, por primeiro, o registro das locações tanto de móveis, quanto de imóveis.

         Essa disciplina confirmou-se, alguns anos depois, com o Decreto 4.403/1921 (de 22-12), que previa em seu art. 4°: «Os contratos de locação de prédios urbanos -a prazo certo- poderão ser feitos por escritura particular, registrada no Registro Geral de Títulos».

         Isso não agradou a Philadelpho Azevedo. Ele via aí uma «gravíssima falha», porque, ante a aberta competência territorial dos ofícios de títulos e documentos, o registro da locação poderia fazer-se em ofício diverso do da comarca em que situado o imóvel objeto de uma dada locação. Por isso, Philadelpho Azevedo criticava a «errada, infeliz e funesta» legislação que, continuava o autor, deveria o «quanto antes» reformar-se, para o fim de incluírem-se no registro de imóveis as locações «que devam ser respeitadas por terceiros».

         Fo o que ocorreu. Clóvis Beviláqua e Carvalho Santos viam, na locação com pacto adjeto de preferência, uma «restrição da propriedade».  Esse era um bom motivo para que o registro da locação de imóveis fosse da competência do ofício imobiliário. Nesse sentido, logo adveio o   Decreto 4.827/1924 (de 7-2), que previa a transcrição, no registro de imóveis, do contrato de locação, «no qual tenha sido consignada clausula de sua vigência, no caso de alienação da cousa locada» (inc. II da alínea b do art. 5º).

         Essa orientação abonou-se pelo Regulamento registral de 1939 (Decreto 4.857, de 9-11-1939), preceituando inscrever-se no livro 4 (registros diversos: cf. art. 256) o «contrato de locação de prédio, no qual tenha sido consignada cláusula de vigência, no caso de alienação da coisa locada» (inc. IX do art. 178).

         Satisfaziam-se, assim, as ponderáveis críticas da doutrina. Esse destino da locação predial ao registro de imóveis supunha a presença contratual de cláusula de vigência do ajuste em caso de alienação. Dessa maneira, persistiu a possibilidade, «no registro de títulos e documentos, para valerem contra terceiros», de transcrição dos «contratos de locação de prédios, feitos por instrumento particular, não compreendidos nas disposições do art. 1.197 do Código Civil» (item 1º do art. 136 do Decreto n. 4.857, de 1939; vale dizer: se o contrato não consignasse cláusula de vigência; por igual, ao registro de títulos e documentos poderiam acorrer as locações de serviço e de coisas móveis: itens 5º e 6º da redação original do mesmo art. 136 –posteriormente, com o Decreto n. 5.318, de 29-2-1940, esses itens se renumeraram, respectivamente, como 4º e 5º).

         A Lei 6.015/1973 perseverou nessa linha adotada com o Regulamento de 1939, prevendo a inscrição, no ofício imobiliário, como já ficou indicado aqui, «dos contratos de locação de prédios, nos quais tenha sido consignada cláusula de vigência no caso de alienação da coisa locada» (n. 3 do inc. I do art. 167), isso de par com a previsão de averbamento, também no registro de imóveis, «do contrato de locação, para os fins de exercício de direito de preferência» (n. 16 do inc. II do art. 167).

         Preservou-se, desse modo, a viabilidade de, no ofício de títulos e documentos, registrarem-se os «contratos de locação de serviços não atribuídos a outras repartições» (item 4º do art. 129 da Lei 6.015), admitindo-se ainda registrarem-se, nesse mesmo ofício de títulos e documentos, «os contratos de locação de prédios, sem prejuízo do disposto do artigo 167, I, nº 3» (item 1º do art. 129.

         Não se lendo na Lei 6.015, de 1973, a anterior referência legislativa à inscrição da locação de coisas móveis, é força admitir que seu registro seja da competência do ofício de títulos e documentos que possui atribuições residuárias: «Caberá ao Registro de Títulos e Documentos a realização de quaisquer registros não atribuídos expressamente a outro ofício» (par.ún. do art. 127).

         Têm-se, então, com a Lei 6.015, dois modos de inscrição das locações imobiliárias no ofício predial: o primeiro, o de seu registro stricto sensu, para fins de vigência do ajuste locatício em caso de alienação do prédio. O segundo modo inscritivo da locação, tal se prevê no n. 16 do inciso II do art. 167 da Lei n. 6.015, é o da averbação »para os fins de exercício de direito de preferência», previsão esta que foi incluída na vigente Lei de registros públicos pelo art. 81 da Lei nacional 8.245, de 1991. Essa averbação é exigível para que se viabilize, contra o adquirente,o direito de preferência aquisitiva que se atribui ao locatário conforme o disposto nos arts. 27 a 34 da Lei n. 8.245.

         Prosseguiremos.