Registro de transferência para sociedade, com o fim de integralização de quota social (concludetur)

(da série Registros sobre Registros n. 327)

Ricardo Dip

 

1.064.           Entre as questões mais relevantes no capítulo do registro imobiliário da conferência de bens está a da variedade de seus títulos (em sentido formal).

A regra de aplicação comum é a do art. 108 do Código civil: "Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País". De maneira que não se exclui que possa ser de natureza particular o título da conferência de bem imobiliário.

Todavia, não se incluíram todas as formas (ou tipos) societários na disciplina codificada, atendendo-se, em legislação extravagante do Código civil nacional, à peculiaridade das empresas mercantis e das sociedades anônimas (ou companhias).

Quanto às primeiras −as empresas mercantis− rege a Lei 8.934/1994 (de 18-11)−, bastante para o registro imobiliário da conferência de bens a certidão expedida por junta comercial, como se lê no art. 64 dessa lei, com a redação que lhe deu a Lei 14.195/2021 (de 26-8): "A certidão dos atos de constituição e de alteração de empresários individuais e de sociedades mercantis, fornecida pelas juntas comerciais em que foram arquivados, será o documento hábil para a transferência, por transcrição no registro público competente, dos bens com que o subscritor tiver contribuído para a formação ou para o aumento do capital".

No tocante com as companhias, lê-se na Lei 6.404/1976 (de 15-12): "A incorporação de imóveis para formação do capital social não exige escritura pública" (art. 89); e, designadamente, no § 2º de seu art. 98: "A certidão dos atos constitutivos da companhia, passada pelo registro do comércio em que foram arquivados, será o documento hábil para a transferência, por transcrição no registro público competente, dos bens com que o subscritor tiver contribuído para a formação do capital social (artigo 8º, § 2º)".

Assinale-se que esses títulos exigem observância −em si próprios ou em declaração anexa− dos elementos indispensáveis à especialidade objetiva. Assim, prevê o § 3º do art. 98 da Lei 6.404: "A ata da assembleia-geral que aprovar a incorporação deverá identificar o bem com precisão, mas poderá descrevê-lo sumariamente, desde que seja suplementada por declaração, assinada pelo subscritor, contendo todos os elementos necessários para a transcrição no registro público".  E, no mesmo sentido, a alínea a do inciso VII do art. 35 da Lei 8.934, ao vedar o arquivamento (no registro público das empresas mercantis) dos contratos sociais ou suas alterações "em que haja incorporação de imóveis à sociedade, por instrumento particular, quando do instrumento não constar: a) a descrição e identificação do imóvel, sua área, dados relativos à sua titulação, bem como o número da matrícula no registro imobiliário".

1.065.           Parece merecer seu tanto de meditação um outro tema, embora alheio propriamente do registro predial da conferência de bens.

Trata-se de considerar se o registro público das empresas mercantis −atividade atribuída às juntas comerciais, nos termos do que dispõe o inciso II do art. 3º da Lei 8.934 ("as Juntas Comerciais, como órgãos locais, com funções executora e administradora dos serviços de registro"), se esse designado «registro público» é, efetivamente, um registro jurídico (assim, por antonomásia, um registro público), ou se, diversamente, é apenas um cadastro ou registro administrativo.

A distinção entre um e outro desses registros possui matizes conformados às normativas locais, o que não impede observar, como indicativo de caráter geral, que o registro jurídico tem nele delegada a potestade da fé pública, ao passo em que o registro administrativo somente atrai um efeito presuntivo simples de veracidade. É dizer que, aquele, só pode impugnar-se, em princípio, por meio de demanda própria na via jurisdicional contenciosa; mas ao registro administrativo, diversamente, pode opor-se de maneira incidental. Desta maneira, ao menos por este critério diferencial, há manifesto interesse em distinguir ambos os tipos de registro. (Não faltaria muita utilidade ainda em discriminar um e outro pela maior ou menor gama de atributos de qualificação, mas isto, por brevidade de causa, fica postergado para outra e melhor ocasião).

Tomemos por suposto que o registro público de empresas mercantis seja um registro jurídico. Dois problemas parecem logo avistáveis acerca desta suposição. O primeiro, o de sua compatibilidade com a ordem constitucional. O segundo, o de sua consonância com a natureza mesma da fé pública notarial (e, por descendência, registral).

Lê-se no caput do art. 236 da Constituição federal de 1988 que "os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público", e consta do § 3º do mesmo artigo: "O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses".

Não diz este dispositivo constitucional quais sejam os referidos "serviços notariais e de registro", e, à luz do § 1º do mesmo art. 236 ("Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário"), alistou-os a Lei 8.935/1994 (de 18-11), em seu art. 5º: tabeliães de notas; tabeliães e oficiais de registro de contratos marítimos; tabeliães de protesto de títulos; oficiais de registro de imóveis;  oficiais de registro de títulos e documentos e civis das pessoas jurídicas;  oficiais de registro civis das pessoas naturais e de interdições e tutelas;  oficiais de registro de distribuição.

Parece de todo interessante observar que, na mesma data da edição da Lei 8.935, outra lei se expediu, a já referida Lei 8.934, tratando do registro público de empresas mercantis, atribuindo-o, nos termos de seu art. 1º, a órgãos federais, estaduais e distrital (entidades coletivas, pois).

Que poderia a lei subconstitucional instituir outros registros (jurídicos) sob o molde do art. 236 do Código político, concede-se. Que, entretanto, o pudesse fazer à margem das indicações desse art. 236, nega-se. Ocorre que o registro público das empresas mercantis não observa o preceito constitucional (designadamente, o disposto no § 3º do art. 236: "O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos…"). Logo, para sua compaginação com a licitude, parece provável haja ele de estimar-se mero cadastro (registro administrativo).

Bem se vê que não se trata só de uma questão de direito posto. Remanesce um problema que aflige substancialmente esse registro de empresas mercantis, enquanto constituído, assim se disse, como pessoa coletiva, pois que a fé pública notarial −cuja natureza impõe seja pessoal e imediata− não se harmoniza com uma fé emanada de «uma coletividade».