Registro da doação entre vivos (primeira parte)

(da série Registros sobre Registros, n. 328) 

                               Des. Ricardo Dip

 

1.066.           O item 33 do inciso I do art. 167 da Lei 6.015 indica o registro −stricto sensu− da doação, que ali se diz "doação entre vivos".

Este acréscimo «entre vivos» parece destinar-se a distinguir, de um lado, os testamentos, e, de outro, as doações, porque, em alguns ordenamentos jurídicos estão reunidos, sob um mesmo título, as doações e os testamentos. Doutrinariamente, no capítulo das liberalidades, podem mesmo reunir-se o testamento, o legado, o fideicomisso, as fundações, o dote e as doações (assim, p.ex., entendeu de o fazer Álvaro D'Ors).

Lê-se, a propósito, em Raoul de la Grasserie, que, numa primeira vista, causa seu tanto de assombro esta reunião de ambos os institutos (doação e testamento), que só teriam em comum o traço de serem uma transferência por título não oneroso, distinguindo-se, contudo, em que a doação se realiza na vida mesma do doador, e, de comum, tem por objeto material coisas singulares, ao passo em que o testamento apenas se efetivará com a morte do transferente e tem por objeto, muitas vezes, uma fração mais extensa de sua patrimônio.

Todavia, diz de la Grasserie, a reunião dos institutos justifica-se porque a doação "não é mais do que a excrescência do testamento, sua modificação quanto às causas e aos efeitos" (in Principios sociológicos del derecho civil, versão castelhana, Madri, 1908, p. 213).

Caberia ainda indicar uma aproximação mais clara entre esses dois institutos, quando se pensa na doação mortis causa, ou seja, a sucessão pactícia que se previa no art. 314 do Código civil brasileiro de 1916 (preceito que não se manteve com o Código de 2002). Dispunha esse art. 314: "As doações estipuladas nos contratos antenupciais, para depois da morte do doador, aproveitarão aos filhos do donatário, ainda que este faleça antes daquele". Trata-se aí, disse Clóvis Beviláqua, "de uma doação para depois da morte do doador, uma verdadeira instituição contratual de herdeiros, que não se coaduna bem com o sistema jurídico de ritualidades rigorosas para os testamentos" (in Código civil dos Estados Unidos do Brasil, observação n. 2 ao art. 314). Formou-se um consenso doutrinário no sentido de que essa doação causa mortis se regia pelas normas referentes à doação e não pelo direito sucessório (assim, Cândido de Oliveira, Espínola, Pontes de Miranda e Agostinho Alvim, este último que se reporta aos demais em Da doação, São Paulo, 1980, p. 129, item 21).

1.067.           O vernáculo «doação» é um derivado nominal do verbo latino do (das, dare, dedi, datum; vejam-se Antônio Geraldo da Cunha, Dicionário etimológico Nova Fronteira, 1982, p. 274; Alfred Ernout e Antoine Meillet, Dictionnaire étymologique de la langue latine, Paris, 2001, p. 178-180; Michiel de Vaan, Etymological dictionary of Latin and the other italic languages, Leiden – Boston, 2008, p. 174-176)).

Donatio est cuiuslibet rei transactio −doação é o traspasso de um objeto, isto o afirmou S.Isidoro de Sevilha, nas Etimologias (Livro V, n. 24), acrescentando chamar-se «doação» (donatio) algo como se dissesse doni actio (a ação de dar). Há neste passo uma contraposição isidoriana entre donatio e emptio, implicitando-se a onerosidade da emptio (= venundatio, scl. venda), em contraste com a donatio que é transferência não onerosa. Assinale-se, porém, que a donatio constitui um ato de liberalidade, e a liberalidade, no aspecto jurídico, é um negócio lucrativo (cf., brevitatis causa, Álvaro D'Ors, Derecho privado romano, Pamplona, 1997, § 299), ou seja, a disposição de liberalidade que há na donatio importa no detrimento patrimonial do doador e no lucro do donatário (D'Ors, § 330).

Nesta linha de entendimento, pois, a doação não é propriamente uma transferência gratuita −sendo esta última um ato despido de efeitos atributivos de patrimônio (p.ex., o depósito e o empréstimo)−, mas sim que seja a doação uma transferência lucrativa, certo que o lucro supõe ordinariamente uma aquisição definitiva ou, quando menos, uma transmissão de vantagens patrimoniais (p.ex., a doação para fins de usufruto −donatio usufructuaria já referida por S.Isidoro, ou para instituir comodato).

Objetar-se-á que uma prestação gratuita de serviço pareceria consistir numa doação, porque o prestador despendeu esforços e tempo que poderiam render-lhe lucro. Agostinho Alvim, em contrário, observou que isto seria "por demais vago e remoto, para caracterizar o empobrecimento" (o.c., p. 17). Em remate, não há doação sem alguma sorte de transferência patrimonial.

1.068.           Nosso vigente Código civil, em seu art. 538, parece atender a essa distinção. Ali se enuncia: "Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra". Esta referência a «bens ou vantagens» já se encontrava no art. 1.165 do Código civil de 1916, pondo à mostra estender-se a doação a hipóteses não transmissivas de domínio, mas de transmissão de vantagens, vale dizer mais exatamente: de vantagens patrimoniais, ou seja, em que há aumento de um patrimônio à custa do detrimento de outro; disse, a propósito, Agostinho Alvim: "É indispensável que haja uma relação de causalidade entre o empobrecimento, por liberalidade,  e o enriquecimento (pauperior et locupletior)" (p. 11). A ideia de «liberalidade», expressa no texto legal, corresponde, segundo o mesmo Agostinho Alvim,  à ideia de «bem-fazer»; a doação, ensinou ele, é contrato benéfico, mas contrato benéfico que importa na diminuição do patrimônio do benfeitor (p. 8).

Pode, entretanto, faltar à doação o suposto da «liberalidade», o ânimo de bem fazer; Agostinho Alvim chega mesmo a observar que, em dados casos, o doador até se aborrece em ter de doar alguma coisa, não escondendo seu aborrecimento. E ainda assim a doação se caracterizará. Por isto, nosso autor distingue entre o motivo da doação e o animus donandi, e prossegue: "A doação não precisa ter por base a beneficência. O motivo não faz parte do negócio, e tanto pode ser nobre, como traduzir baixas aspirações", e conclui: "Não será errôneo, porém, dizer que a doação supõe liberalidade; e isto porque, geralmente se fala do que de ordinário sucede; e normalmente é isto o que acontece" (p. 10).

Prosseguiremos.