Sobre o art. 171 da Lei de registros públicos

(da série Registros sobre Registros n. 443)

                                                             Des. Ricardo Dip

1.254.   Trataremos nesta exposição do art. 171 da Lei brasileira 6.015, de 1973, relativo às inscrições imobiliárias cujo objeto seja o conjunto do que se designa por «vias férreas» ou «estradas de ferro».

           Esses termos complexos −«vias férreas» e «estradas de ferro»−  compreendem um conjunto dotado de unidade jurídica, incluindo coisas imóveis e coisas móveis acedidas a imóveis (que, na expressão do direito português, são «prédios urbanos», isto é, objeto da ação humana e não diretamente da natureza; dizia o par. único do art. 374º do Código civil português de 1867: “Por prédio rústico entende-se o solo ou terreno, e por prédio urbano qualquer edifício incorporado no solo”). Veja-se, agora, o que consta do art. 204º do Código civil de Portugal de 1966:

  “1. São coisas imóveis:   a) Os prédios rústicos e urbanos;”

           Agora consideremos, a propósito especificamente do conjunto que é uma estrada de ferro, o que ensinou Clóvis Beviláqua:

“As estradas de ferro, compreendendo o leito sobre que assentam a superestrutura metálica, os edifícios destinados às estações, assim como o material rodante, formam um todo que, por se achar ligado ao solo, diretamente, por acessão intelectual, tem, evidentemente, o caráter de imóvel. Durante o período de exploração, a empresa concessionária é dona do solo, que lhe foi cedido pelo poder competente, ou obtido por desapropriação, é como proprietária que a empresa hipoteca a estrada” (Código civil dos Estados Unidos do Brasil, comentário ao art. 852, nota 2).

           Enuncia o art. 1.473 do Código civil brasileiro de 2002: “Podem ser objeto de hipoteca: I - os imóveis e os acessórios dos imóveis conjuntamente com eles”, e, no Código civil anterior, ditava-se: “Art. 810. Podem ser objeto de hipoteca: I. Os imóveis; II. os acessórios dos imóveis conjuntamente com eles”.

           Lê-se atualmente no art. 171 da Lei 6.015, com a redação da Lei 13.465, de 11 de julho de 2017: “Os atos relativos a vias férreas serão registrados na circunscrição imobiliária onde se situe o imóvel”. Em outras palavras, esse dispositivo observa o critério geral de competência geográfica dos ofícios imobiliários, qual o do lugar ubi do objeto da inscrição (caput do art. 169).

           Se era para referir, em regra particular própria para as inscrições da «via férrea» ou «estrada de ferro», um critério que, como ficou dito, é o geral da vigente Lei de registros públicos, sempre se poderia perguntar por qual razão se enuncia no plano particular o que já era de imposição geral, salvantes as exceções legais.

           Havia, sem dúvida, um bom motivo para isso. É que, até a vigência da Lei 13.465 (mais provavelmente, em setembro de 2017, data em que se publicou sua retificação), vigorava, acerca das inscrições imobiliárias relativas às vias férreas, uma regra excepcional que assim ditava: “Os atos relativos a vias férreas serão registrados no cartório correspondente à estação inicial da respectiva linha”.

           Essa regra anterior estava em harmonia com o disposto no art. 1.502 do Código civil de 2002 (“As hipotecas sobre as estradas de ferro serão registradas no Município da estação inicial da respectiva linha”) e fora já indicada no art. 852 do Código civil brasileiro de 1916, abonando-se pelo constante do art. 1º do Decreto-lei 3.109, de 12 de março de 1941: “A transmissão das Estradas de Ferro será registada na forma prescrita pelo art. 852 do Código Civil”, salientando-se seu caráter excepcional. Assinale-se, para sublinhar esse caráter de exceção, o preceito do caput do art. 1.492 do mesmo vigente Código civil, referível às hipotecas em geral: “As hipotecas serão registradas no cartório do lugar do imóvel, ou no de cada um deles, se o título se referir a mais de um”.

           A regra precedente, pois, adotou um critério atrativo da competência registral que se anuncia no território da estação inicial de cada linha férrea. Nada tem a ver com uma possível exceção à técnica do fólio real. É sempre possível adotar outros critérios: p.ex., o de um fólio pessoal ou o de fólio real correspondente à regra competencial genérica ou exceptiva.

           Com a Lei 13.465, cuja expressão convinha, de modo prudencial, para mais claramente enunciar a nova regra de competência supressiva da anterior, firmou-se, quanto ao conjunto em que se configuram as «vias férreas» ou «estradas de ferro», a competência registral segundo o locus ubi. O critério atual parece mais oportuno e conveniente, quando se pensa na pesquisa ordinária da publicidade predial; todavia, num sistema que tende gradualmente −e em ritmo que se avista bastante rápido− à centralização de informações, talvez não se perceba o benefício da alteração legislativa.

           Considerando a transição competencial, a Lei 13.465 incluiu um parágrafo único no art. 171 da Lei 6.015, prevendo: “A requerimento do interessado, o oficial do cartório do registro de imóveis da circunscrição a que se refere o caput deste artigo abrirá a matrícula da área correspondente, com base em planta, memorial descritivo e certidão atualizada da matrícula ou da transcrição do imóvel, caso exista, podendo a apuração do remanescente ocorrer em momento posterior”.

           Essa regra procedimental, assim parece, visa a facilitar a inauguração de matrícula para a parcela da via férrea objeto da nova competência, admitindo-se, pois, a reiteração descritiva do imóvel constante do registro anterior, ressalvando eventual via própria posterior para aferir a adequada especialização desse imóvel (não só, portanto, para “apuração do remanescente”, como consta do texto legal, que diz menos do que deveria). Assim, abre-se a nova matrícula com a descrição já antes lançada, deixando-se para o futuro eventual pretensão retificadora.

           Assinale-se que a lei não dispensa a rogação do interessado: “A requerimento do interessado, o oficial do cartório do registro de imóveis, etc.”, de modo que veda, para a abertura da matrícula, na hipótese do art. 171, a atuação propter officium do registrador.