A maior parte das palavras de nossa língua portuguesa são herança do latim –daí que sejam nomes ditos patrimoniais (ou de cultismo). Mas o vocábulo feminino português “alcunha” não deriva dessa origem e, por igual, seu equivalente substantivo masculino “alcunho”, ambos provêm do árabe al-kunyah, que significa sobrenome.
Entre nós, a alcunha prepondera em ser um epíteto “quase sempre denotativo de uma particularidade ou defeito” (Laudelino Freire), defeito físico ou moral. É o que melhor se diria, pois, ser um apodo, uma zombaria, uma afronta.
Camilo Castelo Branco, nas Novelas do Minho, disse que uma das personagens, Caetana, era alcunhada “de epítetos beneméritos da sua bestialidade”, e o paranaense De Plácido e Silva disse que a alcunha se usa por escárnio, dando exemplos com as palavras “coxo” e “zarolho”. Dá conta dessa origem zombeteira a alcunha Aleijadinho que se impôs ao escultor mineiro Antônio Francisco Lisboa. Nesse mesmo sentido, recolhe-se em João Ribeiro a referência a que “ainda chamam de perna santa, por alcunha, ao sujeito que tem qualquer chaga ou doença grave nas pernas”; e o mesmo João Ribeiro reporta-se a uma frase alheia, segundo a qual, num processo-crime, faltando provas, deva julgar-se o delito “por aquele que tiver mais ruim nome”, e isso nos leva às frequentes alcunhas do diabo, que é o tinhoso, o mentiroso, o cão sujo, o esmulambado, o pé-de-peia, o coisa ruim, o bode sujo, o não-sei-que-diga, etc. (cf. Câmara Cascudo, no excelente Dicionário do folclore brasileiro).
Mas, às vezes, não há na origem –ou se solve com o tempo– esse sentido de chocarrice nas alcunhas, caso em que, diz De Plácido e Silva, a alcunha tem o mesmo significado que o apelido, ainda que, talvez, possam esses dois termos com frequência distinguir-se em que o apelido, enquanto tal, não se junta ao nome, substitui-o, ao passo em que a alcunha –tanto que seu uso social seja frequente– pode até agregar-se ao nome: assim, a irmã de Rodion Raskólnikov, personagem principal de Crime e castigo de Dostoiévski, chama-se Avdótia, mas tem dois apelidos: Dúnia e Dunetchka, que não se enunciam com o nome.
Cabe também discriminar-se a alcunha em face do pseudônimo, que é nome suposto com o qual, é o mais comum, alguns escritores publicam suas obras; em alguns casos, tornam-se eles mais conhecidos socialmente pelo pseudônimo do que pelo nome próprio (p.ex., o pensador francês contemporâneo Jean Madiran, cujo verdadeiro nome era Jean Arfel, e Júlio César de Mello e Souza pode não ser muito reconhecido, mas foi ele o grande escritor e matemático brasileiro que teve o pseudônimo Malba Tahan).
De toda a sorte, calha que a alcunha pode, portanto, não ter (ou não manter) caráter de galhofa: ao alcunhar-se o Velho, não se escarnecia do romano Plínio, mas apenas, com isso, se tratava de diferenciá-lo de seu sobrinho, Plínio, o Jovem. Aristóteles é sempre o Estagirita –apenas para com isso aludir-se a seu lugar de nascimento; Guilherme II, rei que foi da Inglaterra, era alcunhado de o Ruivo, sem que nisto se visse irrisão; o Papa Gregório I era o Grande (S. Gregório Magno), e alguns, no cisma ortodoxo, também o referem com ânimo benigno por Gregório, o Dialogante; a Rainha de Castela e Leão, Isabel, é dita a Católica; o Brasil foi descoberto ao tempo de Dom Manuel, o Venturoso; pela notícia de seus milagres, S.Antonio recebeu a alcunha de o Taumaturgo. Bastam aqui esses exemplos para pôr à mostra que há alcunhas benignas.
Pode ocorrer, além disso, que uma dada alcunha, tendo uso social correntio, venha integrar-se ao cognome (sobrenome ou patronímico), caso em que se assenta (ou deve assentar-se) no registro civil das pessoas naturais (vidē o art. 57 da Lei brasileira 6.015, de 31-12-1973).