Bem de família (décima-terceira parte)

É interessante considerar que a instituição do bem de família, sob certo ângulo, é um rompimento com o rotineiro dos atributos dominiais, afastando da propriedade o perigo comum de que, subsidiariamente, responda pela satisfação de débitos do proprietário. Bem observou, a propósito, Eduardo Sócrates Sarmento Filho que o bem de família é um modo excepcional de o proprietário tornar seu próprio bem impenhorável. Por isso mesmo, parece justificável adotar um ritual próprio e rigoroso para sua instituição.

As inscrições imobiliárias, no Brasil, e aqui sendo de ressalvar  as poucas, raras hipóteses de sua efetivação propter officium (p.ex., n. 13 do inc. II do art. 167 da Lei nacional n. 6.015, de 1973, ao prever-se a averbação ex officio dos nomes dos logradouros decretados pelo poder público), são momentos ou termos culminantes de um processo, são a res effecta com se dá a que conclusão de uma tramitação processiva. A instituição do bem de família é também um termo objetivo derradeiro ou consequente processual (cf. arts. 260 et sqq. da Lei n. 6.015), e seu processo é um dos modos especiais de processamento previstos na lei, modos esses que, em seu conjunto no âmbito do direito registral, podem até legitimar a formação de um segmento com alguma autonomia, o do direito dos processos especiais do registro de imóveis.

Superada só a pouco e pouco a tendência de absorção doutrinária do direito registral pelo direito civil, de maneira a reconhecer a autonomia científica e pedagógica dos registros públicos −o que pode ser, sob diferentes aspectos, causa e efeito de sua autonomia legislativa−, e sem embargo da ainda vacilante autonomia da matéria nos cursos de graduação universitária, é de todo compreensível que, nos tempos iniciais de vigência da Lei brasileira 6.015/1973 (isto, pois, em janeiro de 1976), nossos juristas ainda não aspirassem com efetividade a uma divisão mais miúda do direito registral. Mas, com a crescente preocupação de aprofundamento e sedimentação do estudo peculiar deste ramo do saber jurídico deu-se que, paulatinamente, tornaram-se mais e mais cristalinas e convenientes a distinção própria dos assuntos registrais e sua distribuição em esferas segmentadas de investigação.  Já se tem visto que, de fato, aquilo que se prenunciava resultante do vulto dos estudos monográficos, vai agora tomando uma feição dedutiva e de maior robustez na área acadêmica da pós-graduação: o direito registral é uma realidade peculiar para as academias, e é o que se espera logo se estenda com equivalente vigor ao direito notarial.

Da divisão do direito imobiliário em duas partes, a saber, o direito imobiliário material e o direito imobiliário formal (brevitatis causa, cf. o Tratado de Hedemann, §§ 13-15), este, o formal, tem por objeto a organização, os livros e os processos dos ofícios do registro predial. Para mais, triparte-se o direito imobiliário formal em (i) direito organizatório do registro (versando sua divisão territorial, com suas competências correspondentes e sua estruturação pessoal ou subjetiva); (ii) direito de estruturação registral (parte que se refere à estruturação objetiva, a que diz respeito ao “conjunto de livros” [expressão de Roca Sastre], tratando da instituição e conservação dos assentos livrescos e do modo de sua escrituração); e (iii) direito processual registral (ou morfologia registral), cujo objeto são os títulos inscritíveis já formados ou terminados ꟷvale dizer, os títulos em acepção formalꟷ sob o modo de seu processo registrário (i.e., de seu itinerário no registro: prenotação, matrícula, registro stricto sensu, a averbação, indicações, certificação).

Esse direito processual registral que, ao lado de uma parte geral, tem ainda um segmento referido aos processos especiais, subordina-se a uma estrita perspectiva: assim, no concernente aos títulos, somente os considera em sua consumação ou terminação, sem competir-lhe a análise do processo formativo (que é matéria própria da morfologia da titulação); quanto aos atos de inscrição, cabe-lhe, diversamente, apreciá-los apenas em seu processo formativo, uma vez que os efeitos produzidos pelas inscrições consumadas são matéria alheia, são objeto do direito imobiliário substantivo.

Ainda que, num e noutro aspecto, haja pontos de tangência nas disciplinas, saliente-se, quanto aos títulos, a necessidade de resguardar a autonomia de vários ramos do processo de formação documentária −notarial, processual civil, processual penal, administrativo, etc.−, evitando o indevido assédio ou usurpação, pelo direito processual registral, de áreas que são da competência da morfologia dos títulos.

Na parte geral ou comum do direito processual registrário cabem os temas relativos aos pressupostos processuais (positivos e negativos) do registro, às condições do processo registral e ao rito ordinário das inscrições; à parte especial, o exame da diversidade de processos inscritivos que fogem do rito comum. Assim, saber como se prenota um título é assunto da parte comum ou geral do direito processual do registro; o estudo de como se processam no registro a dúvida (arts. 198 et sqq. da Lei n. 6.015, de 1973), o Torrens (arts. 277-88), a regularização fundiária urbana (cf. Lei n. 13.465, de 11-7-2017, e Decreto n. 9.310, de 15-3-2018), a retificação (art. 213 da Lei n. 6.015), a usucapião pela via extrajudiciária (art. 216-A dessa Lei), a remição do imóvel hipotecado (arts. 266-76), o bem de família (arts. 260-5), exatamente à conta da peculiaridade de suas liturgias no registro, justificam tratativa num ramo próprio ou especial a seu estudo.

A clave, pois, para distinguir o que cabe ao direito de processo especial do registro de imóveis está em verificar se o rito da inscrição tem de observar o modelo comum ou se, em vez disso, sua regência tem método próprio, peculiar, situação que levará à competência da parte especial, de que é exemplo exatamente o processo de instituição do bem de família.