Reunidas já algumas prudentes indicações acerca da retificação da inteligência, devemos agora cuidar da retificação ou purificação da outra potência racional: a vontade.
Todavia, antes disto, convém tocar um ponto muito importante e que exige algumas precisões conceituais, entre elas a afirmação decidida de que, racionalmente, não podemos prescindir da atuação de Deus se almejamos uma verdadeira retificação de nossas potências.
Comecemos, então, por insistir em que não é possível estabelecer um verdadeiro processo de retificação de nossas potências −visando a educar nossa consciência moral− sem que cogitemos da atuação de fatores transcendentes. É um erro muito costumeiro imaginar que certas questões são de teologia revelada ou até de religião quando, na verdade, são de conhecimento filosófico, ou seja, mais exatamente, de teologia racional. Com efeito, é preciso distinguir, de um lado, a teologia revelada −vale dizer, o conhecimento de Deus que toma por fundamento a revelação (Bíblia e tradição)−, e, de outro lado, a teologia racional, que se baseia na razão.
Cabe à teologia racional uma série de questões anteriores à fé: p.ex., a existência de Deus, sua natureza, sua ação criadora, sua providência; a isto se designa preambula fidei −preâmbulos racionais da fé; é matéria da razão, pois, e isto evita o erro do fideísmo, que, em resumo, ao recusar a capacidade do entendimento humano em demonstrar a existência de Deus, entrega-se a uma fé qualquer, sem princípios que a possam justificar. Tem-se, entretanto, que a razão pode conhecer com certeza a existência de Deus, seus atributos, sua providência, e a este conhecimento chega por meio das criaturas −e, por isto, é um conhecimento analógico e imperfeito, mas que não conflita com o conhecimento revelado.
O que mais nos importa, neste capítulo, é considerar que a purgação de nossas potências e a educação de nossa consciência não pode prescindir da providência de Deus. Errado seria pensar que podemos, com nossas próprias forças, de maneira autônoma, com absoluta independência da atuação de Deus, alcançar a retificação almejada. Este é o erro típico do naturalismo, que emancipa o homem da relação com Deus, erro mais conhecido por uma de suas correntes: o pelagianismo, que hoje parece hospedar-se nas estantes de livros de autoajuda.
Pelágio foi monge, provavelmente, irlandês, que viveu entre 360 e 422, e que, em confronto com as ideias expostas por S.Agostinho, sustentava que a liberdade humana tornava desnecessária a graça de Deus. Disso extraía ser o homem capaz de, com seus próprios e exclusivos meios, evitar os pecados. Diversamente, S.Agostinho argumentava que a graça, sem excluir a livre cooperação humana, é indispensável para todos os atos bons, incluídos os de arrependimento e de retificação.
Parece-me que seria inútil prosseguir na linha de uma reta formação da consciência moral sem observar que, não se confundindo aqui, nullo modo, a teologia racional com a religião, inviável é pretender uma retificação ou purgação de nossas potências se prescindirmos do primado da graça atual de Deus.