Prossigamos no tema da retificação da inteligência, para melhor prepararmos nossa consciência moral. Já cuidamos, em parte, deste capítulo, ao referir-nos à purgação da memória; é que, de par com a memória sensitiva −que é o sentido interno cuja função é a de conservar as imagens (ou fantasmas) dos entes sensíveis, coisas externas e particulares captadas e percebidas pelos demais sentidos−, há uma outra memória, a intelectiva, cuja função é a de conservar as espécies; ocorre que essa memória intelectiva não é uma potência diversa do próprio entendimento, mas uma propriedade dele (S.th., I, 79, 6).
Por que devemos ocupar-nos da retificação da inteligência? Podemos responder a isto com uma fórmula muito direta e breve, reiterando o que já ficou dito: a inteligência é a principal potência dos homens, é ela que dos animais brutos diferencia especificamente o homem, é a única potência que emana diretamente da essência da alma. Cabe à inteligência, enfim, ordenar e dirigir, o quanto possa, as demais potências humanas.
Essa função intelectual ordenadora e diretora das demais potências humanas justifica plenamente o motivo pelo qual devemos cuidar de sua retificação. A seu propósito, já se assinalaram as linhas gerais que apontam a necessidade de vencer a curiosidade vã, a curiosidade das coisas inúteis, e enfrentar a cegueira do espírito (cæcitas mentis). Mas consideremos agora, de maneira bastante sucinta e prática, que passos devemos dar para essa retificação do entendimento.
Antes de nos lançarmos a esta aventura, é preciso evitar que, picados de soberba, nos iludamos por nossas próprias supostas luzes próprias acerca do assunto. Lembremo-nos: scientia inflat. Prudente, ao revés, é que nos acolhamos, com docilidade, a direções experienciadas por autores provadamente sábios, entre os quais podem indicar-se, por exemplo, desde uma obra mais profunda, assim a de François Charmot (La Teste bien faicte −Etudes sur la formation de l’intelligence), até a articulação de perguntas e respostas em René Bethléem, passando, em acréscimo, por uns tantos pensadores consagrados (Hugo de São Vítor, Réginald Garrigou-Lagrange, Antonio Royo Marín). Mas, por brevidade de causa, sugiro que nos valhamos aqui de algumas prudentes sugestões ditadas muito concisamente pelo Cardeal Jean Verdier (1864-1940), que foi arcebispo de Paris.
A primeira de suas indagações é esta: em que devemos pensar? Já ficou dito: a busca da verdade é necessária: Bethléem acenara a uma analogia: “os conhecimentos são para o espírito o que os alimentos são para o estômago”. Todavia, há conhecimentos inúteis e outros, até, prejudiciais. É evidente a infinitude de pensamentos possíveis, e isto, contanto que reconheçamos a liberdade de nossa vontade, mostra ser possível a eleição do que pensar. Podemos pensar o bem da vontade e o mal da vontade (ou seja, a deficiência do bem). Podemos pensar com ordem ou com desordem. Lembremo-nos de que, na ficção de Dostoiévski, foram os maus pensamentos de Raskólnikof que o levaram ao homicídio da usurária e de sua irmã. Assim, devemos zelar pelo que pensamos.
Depois disso, que devo dizer e como devo dizer? Ou, por outro ângulo, que devo calar? A perversão da linguagem é a perversão dos conceitos. Em nossos tempos, nos quais avultam os peccata linguæ, é fundamental que a razão nos conduza para dizer o que devemos, assim, com os modais adequados, e para não dizer o que não devemos dizer.
Prosseguindo, no rápido roteiro de Verdier: como devemos agir? Para bem agir necessitamos de agudeza para entender, de capacidade para reter, de método para aprender; de sutileza para interpretar, de acerto para começar, de direção para progredir, de perfeição para acabar.