Consciência do Notário e Consciência do Registrador (décima-primeira parte)

Depois de nossa incursão no plano da retificação da inteligência, tratando de purgá-la, como bem sumariou Garrigou-Lagrange, do erro, da ignorância, da obstinação, da cegueira espiritual e da curiosidade com que damos excessiva importância ao secundário em detrimento do principal, temos agora de aventurar-se pelo campo da retificação da vontade.

Disse Tanquerey que a vontade é a rainha de nossas faculdades ꟷla reine des facultésꟷ, nada obstante caiba à inteligência não só a maior proximidade da essência da alma (da qual essência o entendimento emana), mas também o fato de que da mesma inteligência emane a vontade. Assim, em sentido absoluto (simpliciter, ou seja, considerada em si própria), a inteligência é faculdade mais nobre do que a vontade, porque o objeto da inteligência é a verdade, vale dizer, a razão mesma do bem apetecível pela vontade; ao passo em que a vontade, ao apetecer o bem, tem por motivo exatamente a verdade que lhe propõe a inteligência (cf. Domingo Basso). Todavia, em sentido relativo (secundum quid, é dizer, considerada quanto a seus acidentes), a vontade pode ser superior à inteligência, porque se destina a amar a verdade, amar a realidade conhecida. Acrescente-se esta referência de Garrigou Lagrange: a vontade impera à inteligência que esta investigue a verdade; e, por este prisma, a vontade é superior ao entendimento.

Mais ainda, cabe à vontade exercitar um senhorio sobre nossos sentidos externos e internos, além de disciplinar a inteligência para que se dedique à busca da verdade com energia e perseverança. Lembremo-nos da distinção: há atos elícitos (ou seja, os direta e propriamente produzidos por uma potência: assim, entender é ato elícito da inteligência; amar é ato elícito da vontade, porque esses atos procedem diretamente dessas potências e nelas terminam); há também atos imperados (atos produzidos pelas diversas potências sob a influência imperativa da vontade), seja de maneira despótica (principatu despotico ꟷp.ex., abrir e fechar os olhos é ato imperado despótico, porque a vontade o impera de modo irresistível), seja de maneira política (principatu politico ꟷquando há possibilidade de não se obedecer ao comando da vontade; p.ex., a imperação de que alguém não se distraia). O modo despótico do imperativo da vontade apenas concerne aos sentidos externos e à faculdade de locomoção; já os sentidos internos e o entendimento estão sujeitos ao império político da vontade (Royo, Basso, Garrigou Lagrange).

Cabe salientar que uma douta observação de Domingo Basso, no sentido de que, elícitos ou imperados, todos os atos das potências humanas procedem de algum modo da vontade: “Si el acto de uma potencia cualquiera procediera de ella independentemente de la voluntad, sería uma acción puramente mecânica y no podríamos imputarla al sujeto” (ficam alheias, contudo, a este quadro, decerto, as potências vegetativas ꟷnutritivas, aumentativa e generativasꟷ e, ao menos, uma potência motriz: a dilatativo-constritiva). 

Pois bem: compreende-se com facilidade o quanto são necessárias a formação e a retificação da vontade, ou, melhor dito, a educação e a purgação para que tenhamos uma boa vontade. Voltamos aqui a deparar com as deficiências de nossa natureza humana atual ꟷquer dizer, não a natureza humana primordial, mas a decaídaꟷ, e encontramos nossa vontade proclive ao mal, inclinada a desvios. Sem exagerar essa tendência ao mal, tendência que não nos impede de agir o bem, é preciso, no entanto, considerar nossa debilidade e, sobretudo, investigar a causa principal da desordenação da vontade.

O principal defeito de nossa vontade está no amor desordenado de nós próprios ꟷinordinatus amor. Equivale a dizer: o egoísmo que nos faz proclives a satisfazer nossos desejos, ainda que à custa de amesquinhar a verdade e o bem.

Tema complexo, sem dúvida, ao qual voltaremos na próxima exposição desta série.