Des. Ricardo Dip
Depois de termos examinado −neste capítulo relativo às fontes do direito notarial e registral− o papel que se deva (ou possa) reconhecer à constituição política, iniciamos a análise do conceito de lei, sob o aspecto amplo de texto e norma subconstitucionais. Tratamos, então e por primeiro, de sua noção etimológica, e, agora, vamos acercar-nos de seu conceito real, invocando o que, a propósito, entendeu S.Tomás de Aquino, na principal de suas obras, a Suma de teologia, que, entre nós, é mais referida pelo título Suma teológica.
Aproveitaremos a ocasião para duas coisas: uma, indicar algo sobre a estrutura e o método da Suma de teologia de S.Tomás. Outra, para apresentar um outro autor, este, de tempos modernos, cujas lições vamos seguir de perto em nossas incursões sobre o tema específico da lei.
S.Tomás assim define essencialmente a «lei»: «(…) uma prescrição da razão em ordem ao bem comum, promulgada por aquele que tem o cuidado da comunidade» (S.th., I-II, 90, 4).
Essa definição é essencial, porque se aplica a todas as espécies de lei. Indica que a lei é algo próprio da razão, ou seja, o sujeito da lei −vale dizer, o lugar em que a lei reside− é a razão, embora possa este mover-se pela vontade (I-II, 90, 1). Exige a lei, ainda, uma causa final (o bem comum), a ordenação por uma autoridade e a promulgação.
Voltaremos a isso, mas, por agora, tratemos de considerar a estruturação e o método adotados na Suma de teologia de S.Tomás.
Fizemos, há pouco, esta referência: S.th., I-II, 90, 1. Por primeiro, que é isso de “I-II”? É a indicação da parte e de uma subparte da Suma em que encontramos a lição que indicamos. A Suma de teologia de S.Tomás possui três partes, que se designam, em latim, Prima pars, Secunda pars e Tertia pars; a essa terceira parte segue o suplemento, escrito, após a morte de S.Tomás, pelo frade Reginaldo de Piperno.
A Prima pars tem por objeto Deus (uno e Trino) e a criação (dos anjos, do homem e do universo). A Secunda pars trata do homem; e a Tertia pars, do Deus que se fez homem. Já o Suplementum elaborado por Frei Reginaldo de Piperno cuida dos sacramentos, dos novíssimos e do mundo ulterior.
Quando o texto, ao referir-se à Suma, aponta, assim o fizemos, “I-II”, quer, com isso, indicar que se trata da primeira parte (capítulo ou subparte) da segunda parte; ou, em latim, Prima pars secundæ partis −ou, de modo simplificado: Prima secundæ. É que a Secunda pars divide-se em duas subpartes ou dois capítulos: na primeira subparte (I-II) versa o fim dos homens e os meios para obtê-los; na segunda subparte (II-II) trata das virtudes especificadas, dos carismas e das normas.
Ao cuidar dos meios para alcançarem-se os fins humanos, S.Tomás classificou esses meios em intrínsecos (versando aí as virtudes em geral −quanto à sua especialização, o Doutor Comum considera-as na II-II−, os dons, as bem-aventuranças, os frutos, os pecados e os vícios) e extrínsecos, examinando a lei, a graça e o mérito. Assim, na I-II, S.Tomás trata da lei, o que faz a partir da questão 90. Uma questão, na S.th., é a unidade em que se divide uma parte ou uma subparte da obra. Sua sequência numérica é interna a cada parte ou subparte (ex., ao começar a II-II, o Doutor Comum torna a referir «questão 1ª»; já havia uma outra «questão 1ª» na I-II, e ainda na I, como o haverá na III e até no Suplemento).
As questões da Suma, por sua vez, repartem-se em artigos. Então, quando dissemos, S.th., I-II, 90, 4, o que fizemos foi indicar: Suma de teologia, primeira parte da segunda parte, questão 90, artigo quarto. Com essa indicação podemos encontrar a passagem referencial em qualquer edição da Suma. (Coisa similar ocorre com as adequadas citações de Aristóteles pela numeração da obra editada por August Immanuel Bekker; é o significado daquele «Bkk.» que encontramos nas menções dos ensinamentos de Aristóteles).
Há algo mais, que deixaremos para a próxima explanação, e que é a divisão dos artigos em S.Tomás. Isso é importante para conhecermos um pouco do método adotado para o texto da Suma.
Por agora, abramos um parêntese para falar do autor que nos conduzirá, sobretudo, ao tratar da lei. Refiro-me a Vareilles-Sommières (Gabriel La Broüe, conde de Vareilles-Sommières, 1806-1888), que foi diretor da Faculdade católica de direito de Lille. Dos oito primeiros capítulos de seu livro Les principes fondamentaux du droit (que se compulsa pela edição de 1889) extrairemos um guia seguro de conceitos.
E por que esse autor e esse livro?
Desde logo, porque a primeira linha de seu escrito adverte-nos que Vareilles-Sommières trata de ensinar algo que ninguém nunca lhe havia ensinado: os primeiros princípios do direito.
Segundo, porque o autor é muito didático: «Je me suis efforcé d’être court (…). Être court, c’est ne dire que le nécessaire».
Por fim −last, but not least−, porque Vareilles-Sommières era, em matéria de filosofia do direito político, um dos dois autores prediletos de meu mestre José Pedro Galvão de Sousa (o outro, Joseph de Maistre).