Notário, para onde vais? (terceira parte)

            Des. Ricardo Dip

Reitero que trago à consideração −nestas nossas «Claves notariais e registrais»− o texto que escrevi, a pedido do Tabelião José Renato Vilarnovo Garcia, Presidente da seção do Rio de Janeiro do Colégio Notarial do Brasil, texto esse que se publicou no primeiro número da revista O notário contemporâneo (julho a setembro de 2023). Gloso-o num e noutro ponto.

Nossa família notarial

Pode classificar-se o notariado, é comum fazê-lo, em três tipos −ou mais exatamente, em três ramos familiares: o da família anglo-saxã, o da família socialista (ou administrativista) e o da família latina, a que o notariado brasileiro se filia, tendo recebido por herança a história plurissecular que assentou essa família originária latina em três pilares: o da prática das artes do trivium (mormente a retórica[1]), o da especialização nos estudos notariais[2] (de modo principal, graças à Universidade de Bolonha[3]) e o da delegação da fé pública.

Tenhamos bem em conta esses três pilares, porque por dois deles se confirma ser o notário latino sobretudo um órgão da sociedade −uma instituição comunitária−, e não um funcionário do estado. Tal o afirmou Vallet, o notário latino exerce "una función social, pero no estatal", uma função pública, "no en el sentido de ser la suya una función de derecho público sino de interés público"[4]. Não foi diversa a lição de Sanahuja Soler: "el notario no es un órgano del Estado sino de la comunidad jurídica, que funciona sin intervención del Estado"; tampouco a de Antonio Rodríguez Adrados: o notário latino "es un profesional del derecho que ejerce una función privada"[5].

Não se confunda a assinação da investidura com a instituição comunitária espontânea da função notarial. Aquela provinha da potestade real ou do poder eclesiástico (talvez mesmo do poder senhorial), mas a instituição já se antecipara: "(…) as corporações de escrivães −escreveu Bernardo de Sá Nogueira− preexistentes nessas cidades [refere-se o autor às do norte da Itália] estavam manietadas na sua acção por um impedimento de monta: os documentos por si elaborados só faziam fé em tribunal enquanto as testemunhas que haviam roborado os negócios correspondentes estivessem vivas, ou quando conseguiam que a fechada estrutura das chancelarias dos antigos poderes estabelecidos −imperial, episcopal ou palatino− os validasse com o seu selo autêntico"[6].

Ao menos já a partir de 1212 tem-se documentada a existência de notários em Portugal. Dez anos depois, em agosto de 1222, reinando Dom Afonso II −o terceiro monarca lusitano−, alguns tabeliães, «ajuramentados»[7], intervieram em um instrumento de carta de doação pela qual se convertia antigo prestimônio concedido pelo rei a Vicente Hispano[8], sendo, pois, de afirmar como coisa muito provável que, a essa altura, o ofício notarial lusitano fosse «jurado», por submetido, pois, a alguma sorte de compromisso para a investidura. Decerto, já em 1217, o primeiro tabelião de Lisboa −primus et publicus tabellio in Ulixbona−, Pedro Rol (Petrus Raolis), afirmava-se tabellio iuratus, embora isto não prove, de maneira simplificadora, que todos os tabelliones publici fossem então iurati, num tempo em que a jurisdição civil era suscetível de delegar-se, e em que a instituição de juízes compreendia a de notários, por entenderem-se estes magistrados de jurisdição voluntária[9].

De toda a sorte, reitere-se que a investidura dos notários −ainda quando se desse com o atributo da dação da fé pública delegada, em dados casos, pela potestade do rei− não prova mais do que o fato de ser esse atributo o único dos pilares que o notariado latino ficou a dever ao poder político (ou seja, ao estado).

Uma permanência no desenvolvimento

A herança de latinidade recebida pelo notário brasileiro fora já acomodada à romanização da Península hispânica e, de modo particular, a um certo matiz de lusitanidade, vindo a ocorrer que, entre nós, as notas se estruturaram e praticam-se ainda de forma cartorial, de maneira que uma das características da brasilidade de nosso notariado está em que a delegação notarial se delegue[10].

É muito provável seja este caráter cartorial da estrutura e da praxis do notariado brasileiro a principal sua diversificação relativamente quer ao mais remoto notariado latino, quer aos mais próximos, o românico e o lusitano.

Essa matização, ainda que relevante, não afronta nenhum dos princípios notariais, o que permite concluir não exclua o notariado brasileiro da linhagem do notariado latino. Pode afirmar-se, então, que nosso notário é, efetivamente, uma perseveração essencial do notarius publicus latino, com suas sucessivas −talvez melhor: consecutivas− diferenciações românica, hispânica e portuguesa.

Essa assinalação equivale a afirmar que o notário brasileiro traz as marcas de sua historicidade. Estará bem dizer que sua história lhe traçou a natureza, e que essa natureza −na qual se inscreve e lê a finalidade do notariado nacional− é a ordem de dignidade e grandeza da instituição; realizar plenamente sua natureza, enfim, é a enteléquia notarial.

O termo «natureza» refere-se, por primeiro, às ideias de «nascimento» e de «geração», de modo que pareceria, de começo, que só em acepção metafórica pudesse pensar-se em uma «natureza» notarial. Melhor vista a questão, entretanto, saber o que se compreende por «natureza» é saber o que são as coisas, saber o que se compreende como «realidade», e, numa perspectiva histórica, o usus loquendi consagrou uma vintena de sentidos principais para o conceito de «natureza»[11], entre eles as noções de «essência», «substância», «princípio de engendração», «as coisas do mundo criado» e as do «mundo criável», o que autoriza, por incluir-se no âmbito da «realidade das coisas», o uso da noção «natureza» para o produzido ou instituído pelos homens[12].

A função notarial latina −cuja alma é a pessoa do notário− responde à natureza de uma instituição que, multissecular, solidou seus predicados de modo histórico. Seu valor, provado pela experiência de tantos séculos, abandeirou-se pelo notariado brasileiro, que se semeou latino, gestou-se românico, nutriu-se hispânico e veio ao mundo, português. Manteve-se latino, perseverou românico, desenvolveu-se hispânico, frutificou português, e aos atributos inafastáveis de sua essência juntou o que as circunstâncias locais fizeram convir para a consecução dos fins de sua natureza. Esta é sua grandeza: a da tradição, a da permanência substancial no desenvolvimento −para emprestar as palavras sábias de António Sardinha[13]−, a fiel realização de seus fins ao largo dos séculos da brasilidade segundo o modelo de sua geração.

 

[1] Apontou José Bono Huerta que a ars dictandi notarial, reconhecida na segunda metade do século XI, outra coisa não é que a expressão e soma dos ensinamentos do trivium (Historia del derecho notarial español,  ed. Junta de Decanos de los Colegios Notariales de España, Madri, 1979, tomo I, p. 200), certo ainda que o direito era matéria de algumas escolas triviais (p.ex., as de Pavia, Milão e Reggio −cf. Bono, tomo I, p. 128). Das três primeiras artes liberais (liberais porque, dignas do homem livre, artes, disse Ernst Robert Curtius, "que não servem para ganhar dinheiro" −in Literatura europeia e idade média latina, Edusp, 3.ed., São Paulo, 2013, p. 72), a retórica terá sido a arte mestra, assim o afirmou a Irmã Miriam Joseph: "Rhetoric is the master art of the trivium, for it presupposes and makes use of grammar and logic…" (The trivium -The liberal arts of logic, grammar and rhetoric, ed. Paulo Dry Kooks, Filadélfia, 2002, p. 8).

[2] Disse Vallet, com remissão a Bono, que a consolidação do notariado latino se produziu "cuando al ars dictandi, con sus conocimientos gramaticales, lógicos y retóricos, se añaden conocimientos jurídicos y así pasa a convertirse en ars notariæ" (o.t.c., p. 1.079). No mesmo sentido, Bernardo de Sá Nogueira, Tabelionado e instrumento público em Portugal -Gênese e implantação (1212-1279), ed. Imprensa Nacional -Casa da Moeda, Lisboa, 2008, p. 30.

[3] Referiu-se Sá Nogueira (o.c., p. 17, 32 e 33) à teorização jurídica que se deu, na Itália, a partir dos fins do século XI, principalmente graças à Universidade de Bolonha, propiciando, na segunda metade do século XII, o surgimento da doutrina notarial dos «quatro doutores» (Martinus, Bulgarus, Jacobus e Hugus), de que advieram a glosa de Acúrsio e, no século XIII, a formação da ars notariæ (Raniero di Perugia, Petrus Boaterius, Petrus de Unzola, Salatiel e Rolandino Passageri).

[4] Vallet, o.t.c., p. 1.094 e 1.096.

[5] Id., o.t.c., p. 1.096.

[6] Sá Nogueira, o.c., p. 52.

[7] Id., p. 62.

[8] Nessa carta, Dom Afonso III agradeceu a ajuda do donatário, Vicente Hispano −que foi bispo e chanceler do Reino− para a celebração de um acordo com as cinco irmãs do monarca, quais sejam: as três beatas: Donas Teresa, Sancha e Mafalda; a freira de Guadalajara, Dona Branca; e Dona Berengária, a rainha consorte da Dinamarca.

[9] Sá Nogueira, o.c., p. 78, 79 e 85.

[10] Cf. o que dispõe o art. 20 da Lei nacional 8.935/1994 (de 18-11).

[11] Cf. Raimundo Panikkar, El concepto de naturaleza, Consejo Superior de Investigaciones Científicas, Madri, 1972, passim.

[12] Assim, diz Panikkar: "La pregunta por la naturaleza se confunde con la inquisición por la realidad. El problema de la naturaleza no es otra cosa, en el fondo, que la cuestión acerca de la estructura de la realidad. No por casualidad el primer interrogante filosófico que la mente occidental se planteó fue el de la naturaleza. Toda la Filosofía no es otra cosa que la compleja respuesta a esta sencilla pregunta: ¿qué son las cosas?; pregunta que puede sustituirse por esta otra: ¿qué es lo que constituye la naturaleza de las cosas?" (o.c., p. 4).

[13] António Sardinha, Na feira dos mitos: idéias & factos, ed. Gama, 2.ed., Porto, 1942, p. 4.