Sobre a ciência notarial e a ciência registral (parte 19)

Des. Ricardo Dip

 

Passados mais de 30 anos de sua enunciação pública, no XVIII Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil, realizado na cidade de Maceió, entre 21 e 25 de outubro de 1991, o conceito de «qualificação registral», ali originariamente expedido, foi objeto de impugnação por seus supostos subjetivismo e relativismo.

Parece residir na ideia de «consciência» a razão de ser dessa impugnação. Em outras palavras, o que se critica é o fato de, segundo o conceito emitido em 1991, atribuir-se ao registrador a independência jurídica na qualificação dos títulos, independência que tem sempre por suposta a livre consciência do agente.

O termo «consciência» −de muito antiga história− não é unívoco, o que exige, em cada seu uso, o cuidado de verificar a acepção com que se utiliza. Sua noção etimológica −mediando a derivação nominal do verbo conscio (conscis, conscire, conscivi, conscitum) para a formação do adjetivo conscius, a, um− remete ao verbo scio (scis, scire, sivi vel scii, scitum), que significa «saber», «ter conhecimento de» (cf. Alfred Ernout e Antoine Meillet, Dictionnaire étymologique de la langue latine, ed. Klincksieck, Paris, 2001, p.138, e Michiel de Vaan, Etymological Dictionary of Latin and the other Italic Languages, ed. Brill, Leinden-Boston, 2008, p. 545). O prefixo cum indica saber comum ou compartilhado: nomen enim conscientiæ significat applicationem scientiæ ad aliquid, unde conscire dicitur quasi simul scire (S.Tomás, De Veritate, 17, 1, aqui citado pela ed. Marietti das Quæstiones disputatæ, Turim, 1927, vol. IV, p. 60). Noutra parte, o mesmo S.Tomás refere-se a outra acepção de «conscientia»: cum alio scientia (S.th., I, 79, 13).

Até aqui, as noções de «consciência» são as de caráter geral, mas é no mesmo apontado art. 13 da questão 79 da S.th. que já se especializará, em S.Tomás, o conceito de «consciência moral»: conscientia, secundum proprietatem vocabuli, importat ordinem scientiæ ad aliquid. Ou, em vernáculo, na festejada tradução de Alexandre Corrêa: "Segundo, pois, a propriedade do vocábulo, a consciência importa a ordenação da ciência para alguma coisa (…)".

Vê-se nesta passagem que, para S.Tomás, esta acepção de «consciência» −ou seja, de «consciência moral»− é seu significado próprio (secundum proprietatem vocabuli), o que equivale a dizer que os demais sentidos do termo são impróprios, ainda que possam usar-se, como, aliás, salienta o mesmo S.Tomás: com efeito, depois de afirmar que a consciência é um ato (e não um hábito ou uma potência), disse nosso autor: "como o hábito é o princípio do ato, às vezes se atribui o nome de consciência ao hábito primeiro natural, a saber, a sindérese; e é assim que Jerônimo denomina a consciência, sindérese; Basílio, judicatório natural; e Damasceno, lei do nosso intelecto. Pois é costume nomear as causas pelos efeitos e vice-versa" (ainda uma vez, na esmerada versão portuguesa de Alexandre Corrêa, S.th., I, 79, 13).

Exatamente esta foi a noção própria de «consciência» −consciência moral− adotada no conceito de qualificação registral expedido em 1991.

Prosseguiremos.