Des. Ricardo Dip
Como já o deixamos dito, a estruturação lógico-formal do discurso de qualificação jurídica, seja a notarial, seja a registral, não é diversa da estruturação de todo e qualquer discurso da razão em função prática. O que, sim, distingue os discursos de qualificação, propter officium, dos notários e registradores é a matéria desses raciocínios.
Também ficou observado que, sendo a premissa maior de todas as argumentações práticas o primeiro princípio do hábito sindérese −bonum faciendum, malum vitandum−, sem cujo recurso não seria possível o raciocínio, porque sempre se demandaria um fundamento anterior a cada proposição, com regresso ao infinito, ou seja, um infinito retrocesso que, por isto mesmo, seria impeditivo da marcha à frente da argumentação.
Dissemos mais que essa premissa maior se especializa no campo da argumentação jurídica, de maneira que o bonum e o malum sejam, por exigência dos atributos de alteridade e de débito estrito próprios do direito, especificados como iustum (já não o bem qualquer, mas o bem devido a outro) e iniustum (já não o mal qualquer, mas o mal nocivo a outrem). Assim, em vez da premissa maior genérica bonum faciendum, malum vitandum, essa premissa, no discurso da razão prático-jurídica, expressa-se deste modo específico: iustum faciendum, iniustum vitandum.
Embora suscetível de muita controvérsia, deixamos dito que essa premissa maior pode desdobrar-se, de tal maneira −e, no caso dos discursos de qualificação notarial e registral, até para atender aos princípios da legalidade e da segurança jurídica− que a primeira das maiores até se subentenda na segunda. Veja-se neste exemplo: ao assentar a premissa "uma doação imobiliária é suscetível de registro em sentido estrito" deve considerar-se implicitada a ideia de que se trata de um iustum, e que o iustum é faciendum. Sustentamos a possibilidade desse desdobramento para satisfazer a exigência de o extremo maior incluir-se na conclusão do raciocínio, mas não deixa de ser plausível, diversamente, entender que o termo maior esteja da mesma sorte implicitado na conclusão, sem, pois, exigir o desdobro da primeira maior.
Neste ponto, com que rematamos a exposição da semana passada, acenamos à conveniência de uma breve alusão ao tema dos silogismos complexos (que também se designam especiais, compostos ou mistos), nos quais se dá uma alteração externa do silogismo dito simples, mudança que ocorre por adição ou omissão de juízos («per aditionem aut omissionem iudiciorum» -Fröbes).
Cabe aqui, destacadamente, uma referência breve ao epiquerema.
Segundo a maior ou menor complexidade de sua forma, o silogismo, além do caso de sua estrutura simples, pode apresentar várias outras articulações, como são o entimema, o polissilogismo, o dilema, o sorites e, aquilo que mais aqui nos interessa, o epiquerema.
Com sua precisão habitual, disse Leonardo Van Acker (1896-1986) ser o epiquerema «o silogismo em que uma ou todas as premissas vêm acompanhas da prova». Na expressão de Fröbes, o epiquerema é o syllogismus amplificatus, porque "ad unam alteramve præmissam statim eis ratuonem addit".
Esta acepção de epiquerema corresponde a um sentido moderno do termo, que o entende composto por premissas causais, é dizer, premissas em que a maior ou a menor −ambas até mesmo− estão nutridas de sua prova, isto é, de sua fundamentação (cf., brevitatis studio, Jules Tricot). Antes, porém, o epiquerema, conforme o definia Aristóteles, entendia-se o silogismo dialético, em contraposição ao silogismo demonstrativo, porque aquele se funda na doxa e não pode mais do que concluir no verossimilhante.
Tanto um quanto outro desses conceitos são propícios para o discurso de qualificação notarial e registral, mas neste passo daremos atenção mais designada à noção moderna de epiquerema, deixando sua acepção aristotélica para tratamento mais à frente.
Por agora, exemplifiquemos com um epiquerema na esfera do discurso de qualificação registral:
- Iustum faciendum, iniustum vitandum.
- Uma doação de imóvel é, no Brasil, suscetível de registro no ofício predial competente, porque isto o prevê a Lei nacional 6.015, de 1973.
- Este caso diz respeito a uma doação de imóvel, porque isto se determina e especializa na escritura que agora se examina.
(E prossegue adiante a argumentação).
Continuaremos no tema.