Des. Ricardo Dip
Assinalamos já que a determinação jurídica, na perspectiva clássica, leva a considerar a compreensão da lei, a compreensão dos fatos, a interpretação e a conclusão ou aplicação do direito. Dividimos a compreensão da lei em compreensão dos textos e compreensão das normas.
Em nossos tempos acentuaram-se algumas práticas que repercutem nos textos legais, quais sejam as da novidade léxica e da alteração semântica. Sobre isso dediquemos algumas referências.
Nem sempre as novidades léxicas podem situar-se na categoria neológica. Às vezes são combinações de vocábulos já existentes. Tenha-se em conta, a título ilustrativo, o caso do sintagma «união estável», acerca do qual vêm a calhar estas palavras de José Afonso da Silva:
«Tivemos a oportunidade de ver nascer essa verdadeira revolução familiar /a da instituição-sombra da família/ e de imediatamente apoiá-la, quando a fórmula foi sugerida. Estávamos no Plenário da Comissão Afonso Arinos procurando um meio de reconhecimento constitucional das uniões familiares de fato, tidas de modo pejorativo como <concubinato>. Foi aí que −imaginem!− a luz brilhou, talvez como inspiração divina, quando o padre Fernando Bastos Dávila sugeriu <uniões estáveis>. O padre D’Ávila −uma das vozes mais progressistas da nova Igreja Católica− já havia demonstrado suas ideias avançadas durante todas as discussões dos temas chamados sensíveis ou polêmicos, mas a concepção das uniões estáveis foi, certamente, a mais extraordinária, por vir de um padre» (Comentário contextual à Constituição, São Paulo, Malheiros, 4. ed., 2007, p. 853).
Adotou-se, desse modo, a novidade léxica «união estável», para ladear, com um novo significante, a má valorização de um significado que entre o povo era menos favorecido sob o rótulo tradicional de «concubinato». Ao modificar-se sua referência léxica habitual, alterou-se a correspondente semântica na axiologia popular. Aqui talvez deva dar-se razão às vozes marxistas quando se queixam das práticas de engenharia política das elites. Não diverso foi o fenômeno da novidade léxica relativa ao nome /aborto/, substituído pelo sintagma /interrupção da gravidez/.
Não se pense, contudo, que seja algo inédito a superação do que Carlos Martinez de Aguirre (Diagnóstico sobre el derecho de familia, Madrid, Rialp, 1996, p. 116) chamou de «pruridos terminológicos». Jean Gaudemet, em Le mariage en Occident (Paris, Cerf, 2012, p. 9), já observara que os pudores do vocabulário têm uma longa história: «Os antigos referiam-se com o termo pellex à <mulher com quem vives, ainda que ela não seja tua esposa». Hoje, todavia, preferimos os nomes mais honrosos de <amiga» ou <concubina> (…)» (pellex era o nome atribuído à mulher que se casava com um homem que tinha uma esposa −cf. Charlton T. Lewis e Charles Short, Latin dictionary, ed. Clarendon Press, Oxford, 1879).
Quanto à alteração semântica, observemos que ela nada acrescenta ao léxico (ao revés, observou Evanildo Bechara, que essa mudança até pode acarretar uma redução lexical; Gladstone Chaves de Melo −de cujas autorizadas lições muito nos valemos no quanto segue− refere-se a um «empobrecimento do léxico» resultante da «falsa dilatação semântica»). Sequer se trata de um neologismo, porque a mudança semântica preserva o significante, somente alterando seu significado. Há exemplos que se podem recolher na linguagem comum: assim o do verbo /colocar/ que, primeiro substituindo tão impropriamente o verbo /pôr/, terminou tomando o lugar de «dizer», «opinar», «comentar», «indagar», et reliqua; pensemos no uso de «penalizar» (Chaves de Melo), ou ainda de «realizar» e «massivo» (Sílvio Elia acusa nesses dois casos um empréstimo da língua inglesa com efeito modificador no idioma português). Das alterações semânticas dão bons e suficientes exemplos as que afetaram os conceitos de «casamento» e de «família».