Des. Ricardo Dip
Na trilha indicada por Juan Vallet de Goytisolo, tomamos por passos −ou quase-partes− da determinação jurídica (i) a compreensão da lei, (ii) a compreensão dos fatos, (iii) a interpretação e (iv) a conclusão ou aplicação do direito. Destacamos, especialmente, nessa trajetória: primeiro ponto, a diferença entre «compreensão» e «interpretação»; segundo, que a determinação jurídica tem por fim a realização do direito como «coisa justa». Bipartimos a «compreensão da lei» em «compreensão do texto» e «compreensão da norma».
A compreensão do texto da lei −é dizer, das palavras da lei− é designadamente semântica, embora não possa apartar-se da consideração das regras gramaticais relativas à língua da textualização legal, consideração, sobretudo, nos âmbitos ortográfico e sintático. Pode soar estranho que a compreensão dos enunciados da lei tenha de ocupar-se de sua ortografia e de sua sintaxe, mas cabe lembrar da opinião de Fernando Lázaro Carreter, para quem os textos legais são hóspedes de “todo tormento idiomático”.
Essa principal perspectiva semântica −busca da significação das palavras da lei−, no entanto, não é suficiente para descobrir o significado normativo da lei. Por quê? Porque, primeiramente, há significantes ligados a acepções equívocas e análogas; e, segundo, principalmente, porque os textos não revelam o correto significado da norma em meio a sentidos linguisticamente possíveis extraíveis do texto (assim, Karl Engisch e Karl Larenz, aos quais se remete António Castanheira Neves, O actual problema metodológico da interpretação jurídica, Coimbra, 2003, p. 168 e 183).
A antiga parêmia in claris cessat interpretatio −ou talvez melhor dito: in claris cessat comprehensio− perdeu seu antigo prestígio. De haver textos claros não segue o automatismo de significados normativos claros −o que dispensaria a tarefa de compreensão (considere-se, a título ilustrativo, o problema dos homógrafos e o dos termos verbais análogos e equívocos). Por isso, a doutrina hermenêutica do sentido claro −doctrine du sens clair, die “Sens-Clair” Doktrin− mereceu forte crítica de Karl Engisch, porque essa doutrina consiste numa proibição de interpretar (ou mais exatamente: numa proibição de compreender).
Para observar a brevidade destas nossas exposições da série “Claves notariais e registrais”, peço licença para contar-lhes um episódio histórico que revela o quanto há necessidade de distinguir, de um lado, a compreensão do texto e, de outro lado, a compreensão da norma. Não se trata, é verdade, de uma compreensão de lei (e, pois, não haveria, em rigor, um significado normativo a extrair), mas isso não impede o empréstimo da anedota para insistir na importância diferencial entre as duas compreensões de que tratamos.
Valho-me aqui do valioso artigo “As palavras têm seu destino -1” escrito pelo excelente gramático e filólogo Evanildo Bechara, recentemente falecido (morreu em maio de 2025; esse artigo publicou-se em Na ponta da língua, Rio de Janeiro, Lucerna, 2003, vol. 5, p. 212 e 213.)
O caso é o seguinte: Theóphilo Braga, na Antologia portugueza (publicada em 1876), referiu-se a uma écogla de Christovam Falcão (circa 1512-5/1557), apontando-a do gênero «canto de ledino». Vários autorizados mestres acolheram essa indicação de Theóphilo Braga; assim, Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Ernesto Monaci, Ugo Canello e Menéndez Pelayo. Passado pouco mais de uma década, Epifânio Dias, cuidando de editar as Obras de Christóvão Falcão (1893), descobriu o equívoco. Em vez de /canto de ledino/ −publicado no texto do poema pastoril de Christovam Falcão− deveria ler-se /canto dele dino/, ou seja, canto dele digno, canto digno dele.
Pois bem: voltemos ao art. 500 de nosso Código imperial do Comércio, de 1850. O texto desse dispositivo, assim já o vimos, estampa “seduzir ou desencaminhar marinheiro”. Da compreensão textual emerge mais de uma significação, e indicá-las é o objetivo dessa mesma compreensão. Mas é preciso extrair, entre os significados possíveis (é o que há nesse texto), o significado normativo dessa disposição. Ou seja, vai-se agora à compreensão da norma, do sentido ou intenção da lei (abstraia-se aqui a discussão sobre qual intentio deva sindicar-se: a do texto expresso ou a do legislador?).