Para que se tenha aqui um sumário da formação histórica do notariado latino −mais especificamente, para o que nos interessa, do notariado latino com todos seus modais românico-hispânico-lusitanos−, recolhem-se aqui referências dos estudos de Rafael NÚÑEZ LAGOS, de Álvaro D'ORS, de José BONO, de José ORLANDIS, de RODRÍGUEZ ADRADOS e de Juan VALLET DE GOYTISOLO, para lembrar que o direito germânico medieval admitia a autotutela das pretensões de crédito, autorizando medidas que iam desde a simples retenção de bens até a coação pessoal do devedor (assim, o direito de punho −Faustrecht− e a custódia dos devedores e dos fiadores −Einlagen).
Nem sempre, todavia, provinham bons resultados destes meios de garantia ou de satisfação dos créditos, sem contar, além disto, os excessos muitas vezes praticados contra os devedores.
Daí resultou a paulatina adoção, que terminou por ser rotineira, do recurso a um processo judicial simulado, porque a essa altura nenhum crédito era suscetível de executar-se pelo poder político sem que se instaurasse a actio iudicati, vale dizer, sem que a execução estivesse aparelhada por um título judicial (sententia, iudicatum). Não sendo, pois, viável, por então, a execução de títulos de origem extrajudicial, buscavam os credores a via pretoriana (processo in iure) e, depois dela, a esfera judicial (processo in iudicio), instaurando demandas simuladas, cuja finalidade era a de obter uma garantia de futura efetiva satisfação de seus créditos.
Nesses processos simulados, ordinariamente, era convocado o devedor que, participando consensualmente da simulação, apresentava apenas uma ligeira resposta, contestando o pleito diante do pretor, de tal sorte que, com isto, presente, como quer que seja, uma dada litis contestatio, pudesse instalar-se, na sequência, o processo judicial; neste último, em vez, entretanto, da tímida contestação oferecida no processo in iure −o processo inaugural−, o devedor agora confessava expressamente a imputação (confessio in iudicio, ou seja, não já perante o pretor, mas, sim, à frente do iudex). Seguia-se, então, o proferimento da sententia iudicis, e com isto estava aparelhada a actio iudicati.
Esse processo veio, em continuidade, a simplificar-se, passando a admitir-se a confessio in iure (equivale a referir que já não se exigia a contestatio in faciem prætoris, e, de conseguinte, isto levava à desnecessidade do sucessivo processo in iudicio). Daí que, imediatamente, fosse concedida, na via pretoriana, o título para a actio iudicati, ou seja, um título dotado de força executória mediante o só e direto pronunciamento do pretor.
Outra simplificação processual adveio com a dispensa do próprio juízo pretoriano, substituindo-se a formalidade da sentença do pretor pela expedição direta de um mandado −que se denominava preceptum de solvendo− e fruía de força para aparelhar a actio iudicati. Desse preceito de solvendo é que, agora por meio de sua desjudiciarização (avant la lettre…), resultou que se atribuísse diretamente aos scribæ (os mais próximos antecessores dos notários latinos) a atividade que era antes própria, primeiro dos iudices ordinarii e, por simplificação, dos prætores; deste modo, ao preceptum de solvendo sucedeu o preceptum notariorum, a que se deu o nome, comumente, de cláusula guarentigia (vocábulo italiano, que tem a acepção de «garantia»).
Deste modo, mediante a extrajudiciarização da actio iudicati, atribuiu-se força executória a um título não judiciário, isto é, a um documento público notarial, documento público, note-se bem, mas documento de direito privado. E, assim, completou-se a gestação histórica do notariado latino. Observe-se, entretanto, que a atribuição delegada pela soberania política aos notários foi somente a da dação de fé pública, de modo que a potestade −a da fé notarial, que é o terceiro constitutivo da família latina do notariado (constitutivo este que se junta ao do exercício das artes do trivium, mormente da retórica, e ao dos estudos jurídicos especializados a partir da Baixa medieval) foi o único dos pilares que o notariado latino ficou a dever ao poder político, ou seja, ao estado.
(É preciso ao menos deixar aqui apontado algo que é muito relevante para compreender tudo isto: a monarquia, na Idade média, não era a absolutista que se veio a conhecer nos tempos modernos; o rei medievo é apenas o primeiro dos nobres, o primus inter pares, de modo que se compreenderá, assim, a organicidade comunitária fontal que, com uma dada feição espontânea e à margem do poder do rei −i.e., do «estado»−, resultou no fato histórico do notariado latino).